terça-feira, 3 de novembro de 2015

NA ESCOLA TAMBÉM SE APRENDE A SER GENTE

NA ESCOLA TAMBÉM SE APRENDE A SER GENTE[1]

Celso Ilgo Henz*

“o mundo afetivo desse sem-número de crianças é roto, quase esfarelado, vidraça estilhaçada. Por isso mesmo, essas crianças precisam de professoras e de professores profissionalmente competentes e amorosos...” (FREIRE).


Vivemos numa sociedade em que a violência, a exclusão, a discriminação, a dominação, enfim, a desumanização são uma realidade gritante. Neste contexto, somos desafiados a ser educadores(as), buscando fazer de nossas escolas espaços-tempos de vivências mais humanizadoras do que a rua, o mercado de trabalho, a exploração capitalista e tantos outros mecanismos de agressão à dignidade de meninos e meninas, de homens e mulheres.
Entretanto, muitas das nossas escolas foram “esvaziadas” da genteidade dos(as) educandos(as) e educadores(as); todos(as) parecem estar ali somente em função da “transmissão dos conhecimentos científicos”, esquecendo que a escola é lugar de gente (Freire). Lembremos: não nascemos “homens” e/ou “mulheres”; precisamos aprender a ser gente.  Então, educar é humanizar; é ensinar-aprender a genteidade. Mais do que pelas teorias e conceitos, aprendemos a humanização convivendo, dialogando, cooperando, envolvendo-nos em processos de ensino-aprendizagem em que cada um(a) – educando(a) e educador(a) – possa dizer a sua palavra na inteireza do seu corpo consciente. Há uma multiplicidade de questões, elementos e dimensões da nossa vida, do nosso corpo, da nossa cultura, da nossa história, que vão sendo incorporadas nas relações didático-pedagógicas. Todos(as) já “vêm sendo gente”; sabem, sentem, sofrem, vibram, imaginam, criam, falam, pensam, amam, adivinham, sonham... por que vêm se fazendo gente. Este ensaio tem por objetivo desafiar educadores e educadoras a acreditar na possibilidade de “mudar a cara da escola” (Freire), ousando cada vez mais refazer e fazer perguntas, dialogar, incentivar a curiosidade, trabalhar cooperativamente, sempre com muita competência e amorosidade.



 Aprendendo pelo diálogo-problematizador e pela conscientização
Nem o ser humano nem a história estão pré-determinados, mas abertos e modificáveis segundo as decisões, utopias, projetos e ações que homens e mulheres assumem na medida em que, na história e como história, se humanizam no mundo, com o mundo e com outros seres humanos, num continuado e inacabado processo de estar sendo. Como corpos conscientes, com sensibilidade, reflexão, diálogo, imaginação e ousadia, os seres humanos podem modificar e recriar os direcionamentos do processo histórico, muitas vezes transcendendo as situações concretas herdadas de gerações anteriores, embora num primeiro momento tenham sido condicionados pelo legado sócio-histórico-cultural do grupo social a que pertencem, num determinado tempo-espaço. Para isto, as escolas estão incumbidas a trabalhar mais especificamente com o conhecimento, como elemento impulsionador, motivador ou desafiador de diferentes atitudes frente à vida, à história e ao mundo; somente superando uma concepção mágica, mecanicista e cientificista do mundo e da educação, assentada em concepções dogmáticas, será possível desencadear uma práxis educativa dialógica, reflexiva e criativa, capaz de gerar transformações na realidade e nos próprios seres humanos que vão aprendendo a se assumirem como agentes ativos, como sujeitos do processo no qual e pelo qual se descobrem sendo gente (ou impedidos de ser), humanizando-se intersubjetivamente. Para tanto, nunca se deve desprezar o conhecimento menos consciente ou menos reflexivo, com o qual meninos e meninas, homens e mulheres vem sendo; pelo contrário, deve-se sempre partir do senso comum, da leitura de mundo e de vida ainda não sistematizados para chegar-se a uma concepção mais reflexiva, crítica e sistemática que contribua para desenvolver em todos(as) processos de conscientização. “A conscientização não é, pois, uma ciência da consciência; ainda que integrando a prática teórica das ciências em sua práxis total, é sobretudo, opção e luta. Opção pelo homem e luta por sua desalienação”[2].
A inserção crítica do ser humano no mundo se dá como corpo consciente, graças à sua sensibilidade ao contexto e à sua capacidade de reflexão; sem experimentar a realidade e sobre ela refletir não há criticidade, não há conscientização, não há ação transformadora. Por isso, para possibilitar este re-encontro de cada homem e cada mulher consigo mesmo(a) e com o mundo, qualquer esforço educativo libertador deve, através da dialogicidade problematizadora e crítico-reflexiva, sempre partir da realidade, da visão que cada um e cada uma tem do mundo, do trabalho, do conhecimento ou de um determinado assunto; partir do sentir/pensar/agir presente nas concepções e ações dos(as) sujeitos, para a elas retornar com um novo enfoque, capaz de conscientemente ir construindo novas visões e ações transformadoras. Trata-se de superar a concepção unilateral do ser humano, tanto na perspectiva do puro idealismo quanto do objetivismo mecanicista, uma vez que o primeiro afirma que as idéias separadas da realidade governam a história e o segundo defende que os seres humanos não têm influência sobre as transformações históricas. Uma razão-emoção crítico-reflexiva reconhece que homens e mulheres estão em constante interação com a realidade, exercendo sobre ela uma ação transformadora e sendo condicionados(as) pelos resultados desta transformação. É fundamental partir sempre da problematização do mundo do trabalho, das idéias, dos mitos, das crenças, das convicções, das obras, dos produtos, das artes, das ciências, das aspirações, enfim, do mundo da cultura e da história que homens e mulheres conhecem pela vivência cotidiana, buscando com eles(as) descobrir que tudo é resultado das relações dos membros da espécie humana entre si e com o mundo.[3]
Na medida em que o conhecimento do mundo exterior vai mudando, muda também o ser humano; modifica-se a visão, a concepção e a postura de homens e mulheres para com este mundo, modifica-se o seu sentir/pensar/agir. Se antes a realidade do mundo era vista como algo mágico, "sendo assim porque tem que ser", agora ela se apresenta como possibilidade, como horizonte de aventura história, onde cada um(a) pode vir a ser mais, sendo conscientemente no mundo, com o mundo, através da reflexão e da ação transformadora, assumindo o compromisso histórico de ser o(a) sujeito do mundo no qual e com o qual vai se humanizando. Isto é conscientização, que é muito mais do que a mera tomada de consciência: é ação consciente, intencional, comprometida e transformadora; processo pelo qual também se amplia o conhecimento, pois à medida que novos aspectos da realidade vão sendo significados ou re-significados pelos diferentes focos intencionais, mais se amplia o conhecimento, embora nunca chegue a ser cabal e abranger a totalidade da realidade.
A conscientização não é um momento anterior ao engajamento e à luta transformadora. Há uma dialeticidade intrínseca ao processo, onde simultaneamente "eu me conscientizo para lutar. Lutando, me conscientizo"[4]. Não se trata de primeiro criar escolas de conscientização para preparar pessoas que ali aprenderão como, depois, transformar a sociedade. É na práxis e na reflexão sobre a luta que a tomada de consciência se aprofunda enquanto processo de conscientização, implicando sempre mobilização e comprometimento transformador.
Refletindo sobre a realidade de opressão que se experiencia, até se pode alcançar a razão de ser das coisas, mas isto ainda não é conscientização; é na dinamicidade da práxis e da reflexão sobre as diferentes facetas da luta que ocorre o aprofundamento e a intensificação do processo de conscientização. "Leitura do mundo" e "leitura da palavra" se conclamam e fecundam reciprocamente, intensificando cada vez mais a reflexão e o engajamento. Daí a importância da ligação entre teoria e prática, entre os “conteúdos” e a vida, pois uma práxis consciente requer uma boa fundamentação teórica para poder se manter e intensificar, ao mesmo tempo que uma boa fundamentação teórica precisa da vivência concreta, da experiência cotidiana e social. Assim, evita-se o risco de os conteúdos conceituais trabalhados em sala de aula caírem no vazio e se tornarem "cultura morta", sem sentido e sem motivação para a vida de homens e mulheres, meninos e meninas, que vivem e vêm se genteificando interagindo entre si e com a realidade ao seu entorno, numa práxis espácio-temporal que vai se constituindo pelo entrelaçamento de sensibilidades, sentimentos, idéias, palavras, ações, reflexões, comparações, juízos, análises, imaginações, intuições, diálogos, decisões, rupturas, invenções, criações, responsabilidades, sonhos, projetos, podendo suscitar a coragem de dar novos rumos à própria trajetória e à história com a qual vão se fazendo pelo seu sentir/pensar/agir.
Os seres humanos se humanizam na medida em que se integram, conscientemente, em seu contexto, necessitando, para isto, desenvolver a capacidade e a coragem de refletir sobre a realidade circunjacente e sobre a sua situação e/ou postura dentro e diante da mesma. Descobrindo-se na condição de não-sujeitos, reconhecendo a subjetividade do(a) outro(a), dialogando, homens e mulheres, mesmo em situações estruturais de alienação e dominação, a escola poderá ajudar a todos(as) encontrarem luzes e brechas para iniciar processos de transformação desta realidade e da sua nova auto-configuração enquanto sujeitos. Homens e mulheres irão descobrindo que são ontologicamente seres de esperança; e assumem a aventura e o risco histórico de re-humanizarem o mundo no qual eles(as) próprios(as) estão sendo desumanizados, para se reencontrarem e reconquistarem humanamente, não como objetos, mas como sujeitos que tomam nas mãos os rumos da história e da própria existência.
As diferentes respostas que os seres humanos vão dando aos desafios da realidade não mudam apenas o mundo, mas também o modo de ser e de viver, o modo de sentir/pensar/agir dos próprios seres humanos, pois "no ato mesmo de responder aos desafios que lhe apresenta seu contexto de vida, o homem se cria, se realiza como sujeito, porque esta resposta exige dele reflexão, crítica, invenção, eleição, decisão, organização, ação"[5], fazendo com que homens e mulheres não sejam simplesmente "adaptados(as)" à realidade e aos(às) outros(as), mas sim "integrados(as)". A simples apropriação do organizado e sistematizado sócio-culturalmente na história da humanidade não leva ao comprometimento, à criticidade; é o desafio de re-criar, de produzir o novo, de sentir/pensar/agir com as suas “mãos inteligentes”, que possibilita novas perspectivas para o conhecimento da realidade, da história e da própria existência humana como processo de estar sendo enquanto corpo consciente. Então, de passivos receptores de algo pronto, os seres humanos passam a agentes ativos, tornando-se os criadores, os inventores, os produtores de si mesmos e do mundo no qual, intersubjetivamente, se humanizam, descobrindo que o primeiro passo a ser dado é o da libertação da alienação, da condição de objeto, o que só é possível se, como sujeitos, ousarem dialogar e refletir sobre a realidade concreta e sobre si mesmos(as), para então se lançarem na aventura histórica pela qual poderão se constituir em homens novos e mulheres novas. Mais que algo alcançado e acabado, a conscientização é um processo permanente em que aqueles e aquelas que nele se engajam sentem-se constantemente convidados(as) para o exercício e a vivência de uma práxis de diálogo, sensibilidade, curiosidade, reflexão, compromisso, alegria e esperança, fazendo com que toda práxis educativa critico-reflexiva-libertadora – tanto na instituição escolar como nos grupos que desenvolvem práticas educativas na rua, na praça, nas organizações e movimentos populares –  seja um processo de conscientização, assumindo a práxis educativa como sendo "simultaneamente, uma determinada teoria do conhecimento posta em prática, um ato político e um ato estético"[6], numa articulação que vai se configurando na globalidade ética necessária e coerentemente colocada a serviço do resgate e/ou da construção da humanização de homens e mulheres.
Falando sobre os saberes necessários à prática educativa, Freire insiste que toda práxis educativa, enquanto atividade eminentemente humana, não prescinde da eticidade  buscando desenvolver em todos(as) uma racionalidade crítico-reflexiva que faça com que todos(as) nos assumamos como sujeitos  de procura, de decisão,  de opção, de ruptura, de transformação e compromisso histórico; como presença no mundo enquanto presença com o mundo e com os(as) outros(as), homens e mulheres vão aprendendo a pensar-se a si mesmos(as) como alguém que intervém, constata, compara, transforma, avalia, rompe, toma decisões e assume responsabilidades[7].

Aprendendo cinco dimensões para (re)humanizar a educação
Na perspectiva da ética universal do ser humano, necessária para a convivência humana, os(a) responsáveis pelas práxis educativas nas escolas precisam se preocupar em suscitar o desenvolvimento das dimensões ético-política, epistemológica, estético-afetiva, técnico-científica e pedagógica, a serviço da aprendizagem de corpos conscientes em inconcluso e permanente processo de humanização, numa história que também não está dada previamente e nem acabada, mas que passa a ser compreendida como possibilidade, cujas situações-limites e obstáculos se transformam em desafios para a construção coletiva de inéditos-viáveis. Uma práxis educativa dialógica e crítico-reflexiva possiblitará a homens e mulheres descobrirem em si e nos(as) outros(as) a possibilidade de, não obstante todas as determinações estruturais, serem novamente os(as) sujeitos da história; eles e elas têm o poder de se libertarem.  Concebendo a educação como processo de humanização, consideramos necessário que sejam assumidas pelo menos cinco dimensões:
- Dimensão ético-política: toda ação educativa tem uma intencionalidade. As escolas e o que nelas ensinamos-aprendemos não tem fim em si mesmo, mas estão a serviço de um tipo de homem e mulher que vão se constituindo sócio-culturalmente dentro de uma sociedade política e economicamente organizada. Daí a importância de educadores(as) e educandos(as) sabermos a serviço de que genteidade e de que sociedade estamos nos colocando nos seus processos de ensino-aprendizagem. Mais ainda, é preciso viver coerentemente as relações sociais e humanas pretendidas no cotidiano das escolas e das nossas vidas, buscando construir estruturas e relações de poder que superem a dominação e a subalternidade. A nossa atividade é pedagógica e científica, mas a função da escola é político-social.
- Dimensão técnico-científica: o domínio técnico-científico é uma das especificidades da educação escolar. Ele precisa ser assumido com rigorosidade, buscando sua razão de ser dentro da totalidade sócio-histórica em que foi produzido, mas não como “mera transmissão” e também jamais desligado do mundo da vida das pessoas envolvidas na práxis educativa em processo, sob pena de cair-se num cientificismo estéril, e os “novos conhecimentos” (conteúdos conceituais) não terem sentido e importância para que todos(as) possam ser mais homens e ser mais mulheres.
- Dimensão Epistemológica: trabalhando com e a partir dos conhecimentos já sistematizados, educandos(as) e educadores(as) vão refazendo a gênese produtora de tais conhecimentos na pluralidade das suas interrelações, possibilitando assim a construção de novos conhecimentos a partir do que outros(as) investigaram e sistematizaram. Para tanto, é fundamental substituir a “pedagogia da resposta” e da “transmissão de conteúdos” pela “pedagogia da pergunta”, para aguçar a curiosidade epistemológica e a criatividade em educandos(as) e educadores(as). Neste sentido, é importante que os(as) participantes não tenham demasiada certeza das suas certezas, principalmente os(as) professoras(as). Mesmo que haja momentos explicativos, “o fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente  curiosos[8].
- Dimensão estético-afetiva: Crianças, adolescentes e adultos vamos à escola para aprender a ser mais homens e mulheres; mas, muita atenção:“é como uma totalidade – razão, sentimentos, emoções, desejos – que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que se intenciona”[9]. Os seres humanos que se envolvem nas práticas educativas precisam ser reconhecidos e assumidos na sua totalidade, vivenciando o diálogo-problematizador, a sensibilidade para com os diferentes contextos, a criatividade, a autonomia, a solidariedade, a responsabilidade, a participação, a afetividade. Assim também vão aprendendo a descobrir e reconhecer as bonitezas e possibilidades do mundo e da sua genteidade, assumindo-se como seres de esperança, “gostando de ser gente”[10].
- Dimensão Pedagógica: trata-se de resgatar o “pedagogo” da paidéia grega. O(a) educador(as) não é aquele que se coloca acima ou diante de seus(suas) educandos(as) para “instruí-los”, mas com eles(as) faz a “caminhada”; juntos vão descobrindo e (re)aprendendo o que é importante para ser mais, cada um “dizendo a sua palavra” e “escutando a apalavra do/a outro/a”. Os processos de ensino-aprendizagem vão se dando numa reciprocidade de consciências, onde não carece alguém que tudo sabe a ensinar para outro que nada sabe, mas alguém que assuma a responsabilidade de conduzir o processo em condições favoráveis à dinâmica dialógico-problematizadora do grupo, uma vez que "enquanto dirigente do processo, o professor libertador não está fazendo alguma coisa aos estudantes, mas com os estudantes"[11].
O cotidiano escolar, como parte dos processos de existenciação humana, é mais do que um conjunto de teorias, conceitos ou até mesmo discursos críticos; somos homens e mulheres constituídos(as) por sentimentos, crenças, valores, sonhos, emoções, conflitos, idéias e projetos. Daí a importância de um “ambiente” dialógico-reflexivo, permeado por uma razão-emoção que combina o sentir/pensar/agir crítico com o sentir/pensar/agir criativo, curioso, rigoroso e amoroso, com uma “pedagogia da pergunta”, em que educandos(as) e educadores(as) vamos aprendendo também a tomar nas próprias mãos nossas histórias e nossas vidas, a partir e com os conteúdos trabalhados. Abandonando uma visão unilateral e focalista, nossas práticas educativas têm a sua centralidade no ser humano, reconhecendo que “o homem da racionalidade é também o homem da afetividade, do mito, do delírio..., do trabalho..., do jogo..., do imaginário...., da economia..., do consumismo..., é também o da poesia, isto é, do fervor, da participação, do amor, do êxtase”[12]. A escola, então, vai se constituindo um espaço-tempo de “ser feliz”, vivenciando a nossa genteidade na totalidade das dimensões e aspectos da inteireza dos nossos corpos conscientes; vamos descobrindo e assumindo a nossa complexidade, tramada pelo entrelaçamento do individual cm o sócio-histórico-cultural, através de sonhos, angústias, idéias, necessidades, crenças, desejos, afetividades, projetos, medos e esperanças.


Aprendendo com esperança e ação transformadora
Uma práxis educativa a serviço da atividade humana na sua inteireza, fará brotar e florescer uma outra necessidade ontológica do ser humano: a esperança. Educar implica sobretudo confiar na capacidade de cada homem e mulher para superar os obstáculos desvelados e lançar-se na construção de inéditos viáveis;  educar é sonhar, ter projetos, é confiar num futuro melhor para todos(as). Quem não tem esperança e utopias perdeu o seu endereço na História, ficando à mercê dos discursos fatalistas, deterministas e imobilizantes da ideologia neoliberal, uma vez que:
           
vem sendo uma das conotações fortes do discurso neoliberal e de sua prática educativa no Brasil e fora dele, a recusa sistemática do sonho e da utopia, o que sacrifica necessariamente a esperança. A propalada morte do sonho e da utopia, que ameaça a vida da esperança, termina por despolitizar a prática educativa, ferindo a própria natureza humana. A morte do sonho e da utopia, prolongamento conseqüente da morte da História, implica a imobilização da História na redução do futuro à permanência do presente.[13]

Ainda que pareça paradoxal, somente quem consegue apreender a realidade de forma crítico-reflexiva é capaz de viver a esperança. Tomando consciência das circunstâncias que desumanizam e coisificam, analisando os obstáculos e limites, homens e mulheres começam por situar-se como sujeitos, descobrindo que o herdado e dado é fruto das atividades sócio-históricas de seus(suas) antecessores(as). Vão descobrindo que eles(as) também podem dar novos rumos às suas trajetórias e aos caminhos a serem percorridos daquele então para frente; vão se conhecendo e assumindo como homens e mulheres que estão sendo pela história e com a história com os(as) outros(as) e com o mundo, com possibilidades deles(as) mesmos(as) decidirem como prosseguirão sendo. Somente quem sente e analisa criticamente as durezas e agruras da realidade é capaz de querer, pensar, sonhar e projetar um futuro diferente, ter uma utopia pela qual se engaja para participar da construção do inédito viável, lutando por melhores condições de vida para todos e todas. A reflexão sobre as diferentes práticas, modos de ser, de viver, de relacionar-se, de agir e reagir em meio à realidade sócio-histórico-cultural vai suscitando novas visões e novas posturas – um novo sentir/pensar/agir – motivando uma reflexão e fundamentação teórica cada vez maior, ao mesmo tempo que os novos enfoques e análises descortinam novos horizontes e possibilidades. Tudo isto vai provocando uma práxis educativa cada vez mais comprometida com a construção de um mundo cujas estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais ofereçam condições para que cada homem e cada mulher viva o mais plenamente possível a sua dignidade humana e cidadã. Na medida em que se compromete com a luta, alimenta a esperança e intensifica o próprio processo de engajamento transformador. Novamente nas palavras de Freire:

enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã. Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma certa educação da esperança. [...]Uma das tarefas do educador ou educadora progressista, através da análise política, séria e correta, é desvelar as possibilidades, não importam os obstáculos, para a esperança.[14]

            Os fatos, os feitos, as coisas e os próprios seres humanos têm por trás de si uma multiplicidade de razões-emoções que podem ser encontradas quando buscamos compreender mais o processo do que o produto em si, na reflexão radical sobre a trama de relações e aspectos que vão se constituindo numa totalidade instituinte, sendo o instituído apenas uma das partes. Dependendo do enfoque, o instituído pode instrumentalizar-se enquanto mecanismo de adequação e aderência dos seres humanos ao pensado, sistematizado e estruturado, mas pode também ser transformado em possibilidade a partir da qual e com a qual se empreendem novos processos instituintes, assumidos por homens e mulheres que se engajam – de forma critica, reflexiva e esperançosa – na aventura histórica da re-humanização do mundo.
            Assim, través da análise da realidade, um mundo mais bonito aos poucos começa por ser vislumbrado na imaginação de homens e mulheres, de meninos e meninas, que começam por recuperar a auto-confiança e a auto-estima, sentindo-se provocados a uma práxis com um sentir/pensar/agir que prossiga ou comece "re-lendo" criticamente o mundo, para, na dialeticidade do mesmo processo, "re-escrevê-lo", transformá-lo, renová-lo permanentemente. Isto só é possível quando em nossas salas de aula se parte das palavras que manifestam as diferentes leituras que as pessoas fazem de si mesmas e da realidade ao seu entorno, comparando as especificidades e razões-emoções do sentir/pensar/agir de cada um(a), para que "o saber da experiência feito" possa ser confrontado e dialetizado com outros saberes, teorias e experiências e contribuir para a superação da ingenuidade e alienação possíveis ao nível do senso comum e ir se aprofundando em novos níveis de consciência até converter-se em compromisso e ação transformadora, em conscientização enquanto práxis histórica. A saber, uma razão-emoção crítico-reflexiva vai se constituindo através de uma práxis educativa em que educandos(as) e educadores(as) cada vez mais vão tomando consciência de si mesmos(as), dos(as) outros(as) e da realidade sócio-histórico-cultural, assumindo-se como

fazendo-se e refazendo-se no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres e homens, virando seres da inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo, terminaram por ter no sonho também um motor da história. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. [...] Não há utopia fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens.[15]

E assim, aos poucos as nossas escolas vão se transformando em comunidades de aprendizagem do humano, onde professores(as) e alunos(as) possamos ir aprendendo sempre a nos assumirmos como sujeitos de nós mesmos(as) e do mundo em que estamos nos humanizando, “tomando nas mãos”  - dialógica e criticamente – os conhecimentos, os sentimentos, os valores, as técnicas, as habilidades e os sonhos, coerentes com os projetos pessoais e político-sociais construídos e aprendidos através de processos educacionais onde todos podemos “dizer a nossa palavra” e “ser mais”.
Porque o futuro não é algo pré-dado ou a mera repetição mecânica do presente e do passado, há lugar para a educação enquanto problematização, conscientização, reflexão, sonho, utopia, esperança e práxis histórica em que homens e mulheres vamo-nos educando em homens e mulheres-sujeitos que, sabendo-nos corpos conscientes inconclusos, vamos aprendendo a nos assumir como capazes de interagir com o meio, dialogar, ter sensibilidades, refletir, analisar, fazer opções, tomar decisões, sonhar, projetar e agir coerentemente na história em que nos fazemos e refazemos permanentemente, pelo sentir/pensar/agir de uma razão-emoção crítico-reflexiva construída através de processos educacionais emancipadores, libertadores, (re)humanizadores. Sim, a educação tem a sua importância na (re)humanização dos seres humanos e do mundo; se ela não pode tudo, ela pode alguma coisa: eis, ainda, a razão de ser da nossa existência enquanto educadores e educadoras.
Mas... não esperemos demais. Podemos começar já, embora as grandes mudanças dos nossos sonhos ainda não estejam acontecendo na sociedade e na escola. Podemos começar a fazer a diferença nas relações entre nós e os(as) alunos(as), na maneira de enfocar e (re)significar os conteúdos, a nossa maneira de sentir/pensar/agir na escola, na sociedade, no mundo; podemos começar a fazer a diferença na nossa vida pessoal e profissional, sobretudo na medida em que assumirmos o compromisso de fazer a diferença na vida dos alunos e alunas que conosco participam de práxis educativas para aprenderem a “ser mais” gente. Afinal, a escola “é lugar de gente”(Freire); a escola existe porque existem pessoas, educadores(as) e educandos(as), aprendizes do humano que vão se constituindo sócio-histórico-culturalmente. Na dialética da complexidade dos aspectos e dimensões da totalidade humana e social, a escola é o lugar para aprender e viver como gente.


Referências Bibliográficas
FIORI, Ernani Maria. Educação e Política. Textos Escolhidos, vol. 2. Porto Alegre/RS: L&PM, 1991.
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a pedagogia do Oprimido. 8ªed. RJ: Paz e Terra, 2001a.
FREIRE, P. Professora Sim, Tia Não. Cartas a quem ousa ensinar. 11ªed. SP: Olho d'Água, 2001b.
FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. 24ªed. RJ: Paz e Terra, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. SP: Editora UNESP, 2000a.
FREIRE, P. À Sombra desta Mangueira. 3ªed. SP: Ed. Olho d´Água, 2000b.
FREIRE, P. & FAUNDEZ, A. Por uma Pedagogia da Pergunta. RJ: Paz e Terra, 1998.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 6ªed. RJ: Paz e Terra, 1997.
FREIRE, P. A Educação na Cidade. 2ªed. SP: Cortez, 1995.
FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia. O cotidiano do professor. 5ªed. RJ: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, P. & MACEDO, D. Alfabetização. Leitura do mundo, leitura da palavra. 2ªed. RJ: Paz e Terra, 1994.
FREIRE, Paulo. Conscientização. Teoria e prática da libertação. SP: Editora Moraes, 1980.
GADOTTI, Moacir, FREIRE, Paulo e GUIMARÃES, Sérgio. Pedagogia: diálogo e conflito. 4ªed. SP: Cortez, 1995.
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. 2ªed. Belo Horizonte/MG: Ed. UFMG, 2001.
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 3ªed. SP: Cortez; Brasília/DF: UNESCO, 2001.
NIDELCOFF, Maria Tereza. Uma Escola para o Povo. 38ª ed. SP: Editora Brasiliense, 1995.




[1] Capítulo do livro “Educação Humanizadora na Sociedade Globalizada”.  HENZ, C. I; ROSSATO, R. Sta   
   Maria/RS: BIBLOS Editora, 2007, PP 149-166.
* Doutor em Educação pelo PPGEDUC/UFRGS.
   Professor do PPGE – Centro de Educação/UFSM.
  Email: celsoufsm@gmail.com
[2] FIORI, 1991, p. 74.
[3] Veja-se que em todo o processo de alfabetização de adultos(as), Paulo Freire propunha sempre partir de Palavras Geradoras levantadas junto ao povo, na sua cotidianidade, para depois decodificá-las pelo diálogo problematizador (com eles/as) e assim chegar a uma nova consciência sobre a realidade, a cultura, e sobre a concepção dos(as) trabalhadores(as) sobre si mesmos(as). 
[4] FREIRE in GADOTTI et alii, 1995, p. 114.
[5] FREIRE, 1980, p. 37.
[6] FREIRE, in FREIRE & SHO.R, 1996, p. 146
[7] Cf. FREIRE, 1997, pp. 19-20.
[8] FREIRE, 1997, p. 96.
[9] FREIRE, 2000b, p. 76.
[10] Cf  FREIRE, 1997, pp. 58/59.
[11] FREIRE, in FREIRE e SHOR, 2000, p. 61.
[12] MORIN, 2201, p. 58.
[13] FREIRE, 2000a, p. 123.

[14] FREIRE, 2001a, p. 11.

[15] FREIRE, 2001a, p. 91.

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