NA
ESCOLA TAMBÉM SE APRENDE A SER GENTE[1]
“o mundo
afetivo desse sem-número de crianças é roto, quase esfarelado, vidraça
estilhaçada. Por isso mesmo, essas crianças precisam de professoras e de
professores profissionalmente competentes e amorosos...” (FREIRE).
Vivemos numa sociedade em
que a violência, a exclusão, a discriminação, a dominação, enfim, a
desumanização são uma realidade gritante. Neste contexto, somos desafiados a
ser educadores(as), buscando fazer de nossas escolas espaços-tempos de
vivências mais humanizadoras do que a rua, o mercado de trabalho, a exploração
capitalista e tantos outros mecanismos de agressão à dignidade de meninos e
meninas, de homens e mulheres.
Entretanto, muitas das
nossas escolas foram “esvaziadas” da genteidade
dos(as) educandos(as) e educadores(as); todos(as) parecem estar ali somente
em função da “transmissão dos conhecimentos científicos”, esquecendo que a escola é lugar de gente (Freire). Lembremos: não nascemos “homens” e/ou
“mulheres”; precisamos aprender a ser gente.
Então, educar é humanizar; é ensinar-aprender a genteidade. Mais do que pelas teorias e conceitos, aprendemos a
humanização convivendo, dialogando, cooperando, envolvendo-nos em processos de
ensino-aprendizagem em que cada um(a) – educando(a) e educador(a) – possa dizer a sua palavra na inteireza do seu corpo consciente. Há uma multiplicidade
de questões, elementos e dimensões da nossa vida, do nosso corpo, da nossa
cultura, da nossa história, que vão sendo incorporadas nas relações
didático-pedagógicas. Todos(as) já “vêm sendo gente”; sabem, sentem, sofrem,
vibram, imaginam, criam, falam, pensam, amam, adivinham, sonham... por que vêm
se fazendo gente. Este ensaio tem por objetivo desafiar educadores e educadoras
a acreditar na possibilidade de “mudar a cara da escola” (Freire), ousando cada
vez mais refazer e fazer perguntas, dialogar, incentivar a curiosidade,
trabalhar cooperativamente, sempre com muita competência e amorosidade.
Aprendendo pelo diálogo-problematizador e pela conscientização
Nem o ser humano nem a história estão pré-determinados, mas abertos
e modificáveis segundo as decisões, utopias, projetos e ações que homens e
mulheres assumem na medida em que, na história e como história, se humanizam no
mundo, com o mundo e com outros seres humanos, num continuado e inacabado
processo de estar sendo. Como corpos conscientes, com sensibilidade,
reflexão, diálogo, imaginação e ousadia, os seres humanos podem modificar e
recriar os direcionamentos do processo histórico, muitas vezes transcendendo as
situações concretas herdadas de gerações anteriores, embora num primeiro
momento tenham sido condicionados pelo legado sócio-histórico-cultural do grupo
social a que pertencem, num determinado tempo-espaço. Para isto, as escolas estão
incumbidas a trabalhar mais especificamente com o conhecimento, como elemento
impulsionador, motivador ou desafiador de diferentes atitudes frente à vida, à
história e ao mundo; somente superando uma concepção mágica, mecanicista e
cientificista do mundo e da educação, assentada em concepções dogmáticas, será
possível desencadear uma práxis educativa dialógica, reflexiva e criativa,
capaz de gerar transformações na realidade e nos próprios seres humanos que vão
aprendendo a se assumirem como agentes ativos, como sujeitos do processo no
qual e pelo qual se descobrem sendo gente (ou impedidos de ser), humanizando-se
intersubjetivamente. Para tanto, nunca se deve desprezar o conhecimento menos
consciente ou menos reflexivo, com o qual meninos e meninas, homens e mulheres vem sendo; pelo contrário, deve-se
sempre partir do senso comum, da leitura de mundo e de vida ainda não
sistematizados para chegar-se a uma concepção mais reflexiva, crítica e
sistemática que contribua para desenvolver em todos(as) processos de conscientização.
“A conscientização não é, pois, uma ciência da consciência; ainda que
integrando a prática teórica das ciências em sua práxis total, é sobretudo, opção e luta. Opção pelo homem e luta
por sua desalienação”[2].
A inserção crítica do ser humano no mundo se dá como corpo consciente, graças à sua
sensibilidade ao contexto e à sua capacidade de reflexão; sem experimentar a
realidade e sobre ela refletir não há criticidade, não há conscientização, não
há ação transformadora. Por isso, para possibilitar este re-encontro de cada
homem e cada mulher consigo mesmo(a) e com o mundo, qualquer esforço educativo
libertador deve, através da dialogicidade problematizadora e crítico-reflexiva,
sempre partir da realidade, da visão que cada um e cada uma tem do mundo, do
trabalho, do conhecimento ou de um determinado assunto; partir do
sentir/pensar/agir presente nas concepções e ações dos(as) sujeitos, para a
elas retornar com um novo enfoque, capaz de conscientemente ir construindo
novas visões e ações transformadoras. Trata-se de superar a concepção
unilateral do ser humano, tanto na perspectiva do puro idealismo quanto do
objetivismo mecanicista, uma vez que o primeiro afirma que as idéias separadas
da realidade governam a história e o segundo defende que os seres humanos não
têm influência sobre as transformações históricas. Uma razão-emoção
crítico-reflexiva reconhece que homens e mulheres estão em constante interação
com a realidade, exercendo sobre ela uma ação transformadora e sendo
condicionados(as) pelos resultados desta transformação. É fundamental partir
sempre da problematização do mundo do trabalho, das idéias, dos mitos, das
crenças, das convicções, das obras, dos produtos, das artes, das ciências, das
aspirações, enfim, do mundo da cultura e da história que homens e mulheres
conhecem pela vivência cotidiana, buscando com eles(as) descobrir que tudo é
resultado das relações dos membros da espécie humana entre si e com o mundo.[3]
Na medida em que o conhecimento do mundo exterior vai mudando,
muda também o ser humano; modifica-se a visão, a concepção e a postura de
homens e mulheres para com este mundo, modifica-se o seu sentir/pensar/agir. Se
antes a realidade do mundo era vista como algo mágico, "sendo assim porque
tem que ser", agora ela se apresenta como possibilidade, como horizonte de
aventura história, onde cada um(a) pode vir a ser mais, sendo conscientemente no mundo, com o mundo, através da
reflexão e da ação transformadora, assumindo o compromisso histórico de ser o(a)
sujeito do mundo no qual e com o qual vai se humanizando. Isto é
conscientização, que é muito mais do que a mera tomada de consciência: é ação
consciente, intencional, comprometida e transformadora; processo pelo qual
também se amplia o conhecimento, pois à medida que novos aspectos da realidade
vão sendo significados ou re-significados pelos diferentes focos intencionais,
mais se amplia o conhecimento, embora nunca chegue a ser cabal e abranger a
totalidade da realidade.
A conscientização não é um momento anterior ao engajamento e à
luta transformadora. Há uma dialeticidade intrínseca ao processo, onde
simultaneamente "eu me conscientizo para lutar. Lutando, me
conscientizo"[4].
Não se trata de primeiro criar escolas de conscientização para preparar pessoas
que ali aprenderão como, depois, transformar a sociedade. É na práxis e na
reflexão sobre a luta que a tomada de consciência se aprofunda enquanto
processo de conscientização, implicando sempre mobilização e comprometimento
transformador.
Refletindo sobre a realidade de opressão que se experiencia, até
se pode alcançar a razão de ser das
coisas, mas isto ainda não é conscientização; é na dinamicidade da práxis e da
reflexão sobre as diferentes facetas da luta que ocorre o aprofundamento e a
intensificação do processo de conscientização. "Leitura do mundo" e
"leitura da palavra" se conclamam e fecundam reciprocamente,
intensificando cada vez mais a reflexão e o engajamento. Daí a importância da
ligação entre teoria e prática, entre os “conteúdos” e a vida, pois uma práxis
consciente requer uma boa fundamentação teórica para poder se manter e
intensificar, ao mesmo tempo que uma boa fundamentação teórica precisa da
vivência concreta, da experiência cotidiana e social. Assim, evita-se o risco
de os conteúdos conceituais trabalhados em sala de aula caírem no vazio e se
tornarem "cultura morta", sem sentido e sem motivação para a vida de
homens e mulheres, meninos e meninas, que vivem e vêm se genteificando
interagindo entre si e com a realidade ao seu entorno, numa práxis espácio-temporal
que vai se constituindo pelo entrelaçamento de sensibilidades, sentimentos,
idéias, palavras, ações, reflexões, comparações, juízos, análises, imaginações,
intuições, diálogos, decisões, rupturas, invenções, criações,
responsabilidades, sonhos, projetos, podendo suscitar a coragem de dar novos
rumos à própria trajetória e à história com a qual vão se fazendo pelo seu
sentir/pensar/agir.
Os seres humanos se humanizam na medida em que se integram,
conscientemente, em seu contexto, necessitando, para isto, desenvolver a
capacidade e a coragem de refletir sobre a realidade circunjacente e sobre a
sua situação e/ou postura dentro e diante da mesma. Descobrindo-se na condição
de não-sujeitos, reconhecendo a subjetividade do(a) outro(a), dialogando,
homens e mulheres, mesmo em situações estruturais de alienação e dominação, a
escola poderá ajudar a todos(as) encontrarem luzes e brechas para iniciar
processos de transformação desta realidade e da sua nova auto-configuração
enquanto sujeitos. Homens e mulheres irão descobrindo que são ontologicamente
seres de esperança; e assumem a aventura e o risco histórico de re-humanizarem
o mundo no qual eles(as) próprios(as) estão sendo desumanizados, para se
reencontrarem e reconquistarem humanamente, não como objetos, mas como sujeitos
que tomam nas mãos os rumos da história e da própria existência.
As diferentes respostas que os seres humanos vão dando aos
desafios da realidade não mudam apenas o mundo, mas também o modo de ser e de
viver, o modo de sentir/pensar/agir dos próprios seres humanos, pois "no
ato mesmo de responder aos desafios que lhe apresenta seu contexto de vida, o
homem se cria, se realiza como sujeito, porque esta resposta exige dele
reflexão, crítica, invenção, eleição, decisão, organização, ação"[5], fazendo com que homens e mulheres não
sejam simplesmente "adaptados(as)" à realidade e aos(às) outros(as),
mas sim "integrados(as)". A simples apropriação do organizado e
sistematizado sócio-culturalmente na história da humanidade não leva ao
comprometimento, à criticidade; é o desafio de re-criar, de produzir o novo, de
sentir/pensar/agir com as suas “mãos inteligentes”, que possibilita novas
perspectivas para o conhecimento da realidade, da história e da própria
existência humana como processo de estar
sendo enquanto corpo consciente.
Então, de passivos receptores de algo pronto, os seres humanos passam a agentes
ativos, tornando-se os criadores, os inventores, os produtores de si mesmos e
do mundo no qual, intersubjetivamente, se humanizam, descobrindo que o primeiro
passo a ser dado é o da libertação da alienação, da condição de objeto, o que
só é possível se, como sujeitos, ousarem dialogar e refletir sobre a realidade
concreta e sobre si mesmos(as), para então se lançarem na aventura histórica
pela qual poderão se constituir em homens novos e mulheres novas. Mais que algo
alcançado e acabado, a conscientização é um processo permanente em que aqueles
e aquelas que nele se engajam sentem-se constantemente convidados(as) para o
exercício e a vivência de uma práxis de diálogo, sensibilidade, curiosidade,
reflexão, compromisso, alegria e esperança, fazendo com que toda práxis
educativa critico-reflexiva-libertadora – tanto na instituição escolar como nos
grupos que desenvolvem práticas educativas na rua, na praça, nas organizações e
movimentos populares – seja um processo
de conscientização, assumindo a práxis educativa como sendo "simultaneamente, uma determinada
teoria do conhecimento posta em prática, um ato político e um ato
estético"[6], numa articulação que
vai se configurando na globalidade ética necessária e coerentemente colocada a
serviço do resgate e/ou da construção da humanização de homens e mulheres.
Falando
sobre os saberes necessários à prática
educativa, Freire insiste que toda práxis educativa, enquanto atividade
eminentemente humana, não prescinde da eticidade buscando desenvolver em todos(as) uma
racionalidade crítico-reflexiva que faça com que todos(as) nos assumamos como
sujeitos de procura, de decisão, de opção, de ruptura, de transformação e
compromisso histórico; como presença no mundo enquanto presença com o mundo e
com os(as) outros(as), homens e mulheres vão aprendendo a pensar-se a si
mesmos(as) como alguém que intervém, constata, compara, transforma, avalia,
rompe, toma decisões e assume responsabilidades[7].
Aprendendo cinco dimensões
para (re)humanizar a educação
Na perspectiva da ética
universal do ser humano, necessária para a convivência humana, os(a)
responsáveis pelas práxis educativas nas escolas precisam se preocupar em suscitar
o desenvolvimento das dimensões ético-política, epistemológica,
estético-afetiva, técnico-científica e pedagógica, a serviço da aprendizagem de
corpos conscientes em inconcluso e
permanente processo de humanização, numa história que também não está dada
previamente e nem acabada, mas que passa a ser compreendida como possibilidade, cujas situações-limites e obstáculos se
transformam em desafios para a construção coletiva de inéditos-viáveis. Uma práxis educativa dialógica e crítico-reflexiva
possiblitará a homens e mulheres descobrirem em si e nos(as) outros(as) a
possibilidade de, não obstante todas as determinações estruturais, serem
novamente os(as) sujeitos da história; eles e elas têm o poder de se
libertarem. Concebendo a educação como
processo de humanização, consideramos necessário que sejam assumidas pelo menos
cinco dimensões:
- Dimensão
ético-política: toda ação educativa tem uma
intencionalidade. As escolas e o que nelas ensinamos-aprendemos não tem fim em
si mesmo, mas estão a serviço de um tipo de homem e mulher que vão se
constituindo sócio-culturalmente dentro de uma sociedade política e
economicamente organizada. Daí a importância de educadores(as) e educandos(as)
sabermos a serviço de que genteidade e de que sociedade estamos nos colocando
nos seus processos de ensino-aprendizagem. Mais ainda, é preciso viver
coerentemente as relações sociais e humanas pretendidas no cotidiano das
escolas e das nossas vidas, buscando construir estruturas e relações de poder
que superem a dominação e a subalternidade. A nossa atividade é pedagógica e
científica, mas a função da escola é político-social.
- Dimensão
técnico-científica: o domínio técnico-científico é uma das especificidades da
educação escolar. Ele precisa ser assumido com rigorosidade, buscando sua razão de ser dentro da totalidade
sócio-histórica em que foi produzido, mas não como “mera transmissão” e também
jamais desligado do mundo da vida das pessoas envolvidas na práxis educativa em
processo, sob pena de cair-se num cientificismo estéril, e os “novos
conhecimentos” (conteúdos conceituais) não terem sentido e importância para que
todos(as) possam ser mais homens e ser mais mulheres.
- Dimensão
Epistemológica: trabalhando com e a partir dos
conhecimentos já sistematizados, educandos(as) e educadores(as) vão refazendo a
gênese produtora de tais conhecimentos na pluralidade das suas interrelações,
possibilitando assim a construção de novos conhecimentos a partir do que
outros(as) investigaram e sistematizaram. Para tanto, é fundamental substituir
a “pedagogia da resposta” e da “transmissão de conteúdos” pela “pedagogia da
pergunta”, para aguçar a curiosidade epistemológica e a criatividade em
educandos(as) e educadores(as). Neste sentido, é importante que os(as)
participantes não tenham demasiada certeza das suas certezas, principalmente
os(as) professoras(as). Mesmo que haja momentos explicativos, “o fundamental é
que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é
dialógica, aberta, curiosa,
indagadora e não apassivada, enquanto fala ou ouve. O que importa é que
professor e alunos se assumam epistemologicamente
curiosos”[8].
- Dimensão
estético-afetiva: Crianças,
adolescentes e adultos vamos à escola para aprender a ser mais homens e mulheres; mas, muita atenção:“é como uma
totalidade – razão, sentimentos, emoções, desejos – que meu corpo consciente do
mundo e de mim capta o mundo a que se intenciona”[9]. Os seres humanos que se envolvem nas
práticas educativas precisam ser reconhecidos e assumidos na sua totalidade,
vivenciando o diálogo-problematizador, a sensibilidade para com os diferentes
contextos, a criatividade, a autonomia, a solidariedade, a responsabilidade, a
participação, a afetividade. Assim também vão aprendendo a descobrir e
reconhecer as bonitezas e possibilidades do mundo e da sua
genteidade, assumindo-se como seres de
esperança, “gostando de ser gente”[10].
- Dimensão Pedagógica: trata-se de resgatar o “pedagogo” da paidéia grega.
O(a) educador(as) não é aquele que se coloca acima ou diante de seus(suas) educandos(as)
para “instruí-los”, mas com eles(as) faz a “caminhada”; juntos vão descobrindo
e (re)aprendendo o que é importante para ser
mais, cada um “dizendo a sua palavra” e “escutando a apalavra do/a
outro/a”. Os
processos de ensino-aprendizagem vão se dando numa reciprocidade de consciências, onde não carece alguém que tudo sabe
a ensinar para outro que nada sabe, mas alguém que assuma a responsabilidade de
conduzir o processo em condições favoráveis à dinâmica
dialógico-problematizadora do grupo, uma vez que "enquanto dirigente do processo, o professor libertador não está
fazendo alguma coisa aos estudantes, mas com os estudantes"[11].
O cotidiano
escolar, como parte dos processos de existenciação humana, é mais do que um
conjunto de teorias, conceitos ou até mesmo discursos críticos; somos homens e
mulheres constituídos(as) por sentimentos, crenças, valores, sonhos, emoções,
conflitos, idéias e projetos. Daí a importância de um “ambiente”
dialógico-reflexivo, permeado por uma razão-emoção que combina o sentir/pensar/agir
crítico com o sentir/pensar/agir criativo, curioso, rigoroso e amoroso, com uma
“pedagogia da pergunta”, em que educandos(as) e educadores(as) vamos aprendendo
também a tomar nas próprias mãos nossas histórias e nossas vidas, a partir e
com os conteúdos trabalhados. Abandonando uma visão unilateral e focalista,
nossas práticas educativas têm a sua centralidade no ser humano, reconhecendo
que “o homem da racionalidade é também o homem da afetividade, do mito, do
delírio..., do trabalho..., do jogo..., do imaginário...., da economia..., do
consumismo..., é também o da poesia, isto é, do fervor, da participação, do
amor, do êxtase”[12]. A
escola, então, vai se constituindo um espaço-tempo de “ser feliz”, vivenciando
a nossa genteidade na totalidade das dimensões e aspectos da inteireza dos
nossos corpos conscientes; vamos
descobrindo e assumindo a nossa complexidade, tramada pelo entrelaçamento do
individual cm o sócio-histórico-cultural, através de sonhos, angústias, idéias,
necessidades, crenças, desejos, afetividades, projetos, medos e esperanças.
Aprendendo com
esperança e ação transformadora
Uma práxis educativa a serviço da atividade humana na sua inteireza, fará brotar e florescer uma
outra necessidade ontológica do ser humano: a esperança. Educar implica
sobretudo confiar na capacidade de cada homem e mulher para superar os
obstáculos desvelados e lançar-se na construção de inéditos viáveis; educar é
sonhar, ter projetos, é confiar num futuro melhor para todos(as). Quem não tem
esperança e utopias perdeu o seu endereço na História, ficando à mercê dos
discursos fatalistas, deterministas e imobilizantes da ideologia neoliberal,
uma vez que:
vem sendo uma das conotações fortes do
discurso neoliberal e de sua prática educativa no Brasil e fora dele, a recusa
sistemática do sonho e da utopia, o que sacrifica necessariamente a esperança.
A propalada morte do sonho e da utopia, que ameaça a vida da esperança, termina
por despolitizar a prática educativa, ferindo a própria natureza humana. A morte
do sonho e da utopia, prolongamento conseqüente da morte da História, implica a
imobilização da História na redução do futuro à permanência do presente.[13]
Ainda que pareça paradoxal, somente quem consegue apreender a
realidade de forma crítico-reflexiva é capaz de viver a esperança. Tomando
consciência das circunstâncias que desumanizam e coisificam, analisando os obstáculos e limites, homens e mulheres
começam por situar-se como sujeitos, descobrindo que o herdado e dado é fruto
das atividades sócio-históricas de seus(suas) antecessores(as). Vão descobrindo
que eles(as) também podem dar novos rumos às suas trajetórias e aos caminhos a
serem percorridos daquele então para frente; vão se conhecendo e assumindo como
homens e mulheres que estão sendo
pela história e com a história com os(as) outros(as) e com o mundo, com
possibilidades deles(as) mesmos(as) decidirem como prosseguirão sendo. Somente quem sente e analisa
criticamente as durezas e agruras da realidade é capaz de querer, pensar,
sonhar e projetar um futuro diferente, ter uma utopia pela qual se engaja para
participar da construção do inédito
viável, lutando por melhores condições de vida para todos e todas. A
reflexão sobre as diferentes práticas, modos de ser, de viver, de
relacionar-se, de agir e reagir em meio à realidade sócio-histórico-cultural
vai suscitando novas visões e novas posturas – um novo sentir/pensar/agir –
motivando uma reflexão e fundamentação teórica cada vez maior, ao mesmo tempo
que os novos enfoques e análises descortinam novos horizontes e possibilidades.
Tudo isto vai provocando uma práxis educativa cada vez mais comprometida com a
construção de um mundo cujas estruturas sociais, econômicas, políticas e
culturais ofereçam condições para que cada homem e cada mulher viva o mais
plenamente possível a sua dignidade humana e cidadã. Na medida em que se
compromete com a luta, alimenta a esperança e intensifica o próprio processo de
engajamento transformador. Novamente nas palavras de Freire:
enquanto
necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude
histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se
alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã. Sem um
mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a
esperança, como necessidade ontológica, se desarvora, se desendereça e se torna
desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de
uma certa educação da esperança. [...]Uma das tarefas do educador ou educadora
progressista, através da análise política, séria e correta, é desvelar as
possibilidades, não importam os obstáculos, para a esperança.[14]
Os fatos, os feitos, as coisas e os
próprios seres humanos têm por trás de si uma multiplicidade de razões-emoções
que podem ser encontradas quando buscamos compreender mais o processo do que o
produto em si, na reflexão radical sobre a trama de relações e aspectos que vão
se constituindo numa totalidade instituinte, sendo o instituído apenas uma das
partes. Dependendo do enfoque, o instituído pode instrumentalizar-se enquanto
mecanismo de adequação e aderência dos seres humanos ao pensado, sistematizado
e estruturado, mas pode também ser transformado em possibilidade a partir da qual e com a qual se empreendem novos
processos instituintes, assumidos por homens e mulheres que se engajam – de
forma critica, reflexiva e esperançosa – na aventura histórica da
re-humanização do mundo.
Assim,
través da análise da realidade, um mundo mais bonito aos poucos começa por ser
vislumbrado na imaginação de homens e mulheres, de meninos e meninas, que
começam por recuperar a auto-confiança e a auto-estima, sentindo-se provocados
a uma práxis com um sentir/pensar/agir que prossiga ou comece
"re-lendo" criticamente o mundo, para, na dialeticidade do mesmo
processo, "re-escrevê-lo", transformá-lo, renová-lo permanentemente.
Isto só é possível quando em nossas salas de aula se parte das palavras que
manifestam as diferentes leituras que as pessoas fazem de si mesmas e da
realidade ao seu entorno, comparando as especificidades e razões-emoções do
sentir/pensar/agir de cada um(a), para que "o saber da experiência
feito" possa ser confrontado e dialetizado com outros saberes, teorias e
experiências e contribuir para a superação da ingenuidade e alienação possíveis
ao nível do senso comum e ir se aprofundando em novos níveis de consciência até
converter-se em compromisso e ação transformadora, em conscientização enquanto
práxis histórica. A saber, uma razão-emoção crítico-reflexiva vai se constituindo
através de uma práxis educativa em que educandos(as) e educadores(as) cada vez
mais vão tomando consciência de si mesmos(as), dos(as) outros(as) e da
realidade sócio-histórico-cultural, assumindo-se como
fazendo-se e
refazendo-se no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres
e homens, virando seres da inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo,
terminaram por ter no sonho também um
motor da história. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança.
[...] Não há utopia fora da tensão entre a denúncia de um presente tornando-se
cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído,
política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens.[15]
E assim, aos poucos as nossas escolas vão se transformando em
comunidades de aprendizagem do humano, onde professores(as) e alunos(as)
possamos ir aprendendo sempre a nos assumirmos como sujeitos de nós mesmos(as)
e do mundo em que estamos nos humanizando, “tomando nas mãos” - dialógica e criticamente – os
conhecimentos, os sentimentos, os valores, as técnicas, as habilidades e os
sonhos, coerentes com os projetos pessoais e político-sociais construídos e
aprendidos através de processos educacionais onde todos podemos “dizer a nossa palavra” e “ser mais”.
Porque o futuro não é algo pré-dado ou a mera repetição mecânica
do presente e do passado, há lugar para a educação enquanto problematização,
conscientização, reflexão, sonho, utopia, esperança e práxis histórica em que
homens e mulheres vamo-nos educando em homens e mulheres-sujeitos que,
sabendo-nos corpos conscientes
inconclusos, vamos aprendendo a nos assumir como capazes de interagir com o
meio, dialogar, ter sensibilidades, refletir, analisar, fazer opções, tomar
decisões, sonhar, projetar e agir coerentemente na história em que nos fazemos
e refazemos permanentemente, pelo sentir/pensar/agir de uma razão-emoção
crítico-reflexiva construída através de processos educacionais emancipadores,
libertadores, (re)humanizadores. Sim, a educação tem a sua importância na
(re)humanização dos seres humanos e do mundo; se ela não pode tudo, ela pode
alguma coisa: eis, ainda, a razão de ser da nossa existência enquanto
educadores e educadoras.
Mas... não esperemos
demais. Podemos começar já, embora as grandes mudanças dos nossos sonhos ainda
não estejam acontecendo na sociedade e na escola. Podemos começar a fazer a
diferença nas relações entre nós e os(as) alunos(as), na maneira de enfocar e
(re)significar os conteúdos, a nossa maneira de sentir/pensar/agir na escola,
na sociedade, no mundo; podemos começar a fazer a diferença na nossa vida
pessoal e profissional, sobretudo na medida em que assumirmos o compromisso de
fazer a diferença na vida dos alunos e alunas que conosco participam de práxis educativas para aprenderem a “ser
mais” gente. Afinal, a escola “é lugar de gente”(Freire); a escola existe
porque existem pessoas, educadores(as) e educandos(as), aprendizes do humano
que vão se constituindo sócio-histórico-culturalmente. Na dialética da
complexidade dos aspectos e dimensões da totalidade humana e social, a escola é
o lugar para aprender e viver como gente.
Referências
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MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 3ªed. SP: Cortez;
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NIDELCOFF, Maria Tereza. Uma Escola para o Povo. 38ª ed. SP: Editora Brasiliense, 1995.
[1] Capítulo
do livro “Educação Humanizadora na Sociedade Globalizada”. HENZ, C. I; ROSSATO, R. Sta
Maria/RS:
BIBLOS Editora, 2007, PP 149-166.
* Doutor em
Educação pelo PPGEDUC/UFRGS.
Professor do
PPGE – Centro de Educação/UFSM.
Email: celsoufsm@gmail.com
[2] FIORI, 1991, p. 74.
[3]
Veja-se que em todo o processo de alfabetização de adultos(as), Paulo Freire
propunha sempre partir de Palavras
Geradoras levantadas junto ao povo, na sua cotidianidade, para depois
decodificá-las pelo diálogo problematizador (com eles/as) e assim chegar a uma
nova consciência sobre a realidade, a cultura, e sobre a concepção dos(as)
trabalhadores(as) sobre si mesmos(as).
[5] FREIRE, 1980, p. 37.
[7] Cf. FREIRE, 1997, pp. 19-20.
[8] FREIRE,
1997, p. 96.
[9] FREIRE,
2000b, p. 76.
[10] Cf FREIRE, 1997, pp. 58/59.
[11] FREIRE, in FREIRE e SHOR, 2000, p. 61.
[12] MORIN,
2201, p. 58.
[13] FREIRE, 2000a, p. 123.
[14] FREIRE, 2001a, p. 11.
[15]
FREIRE, 2001a, p. 91.
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