terça-feira, 3 de novembro de 2015

A AVALIAÇÃO COMO CONSCIENTIZAÇÃO: vivenciando um sentir/pensar/agir amoroso, crítico e dialógico-reflexivo

A AVALIAÇÃO COMO CONSCIENTIZAÇÃO:
vivenciando um sentir/pensar/agir amoroso, crítico e dialógico-reflexivo*

Celso Ilgo Henz[1]

Já faz algumas décadas que estamos debatendo e refletindo sobre uma das temáticas centrais nos processos de ensino-aprendizagem: a avaliação. Estas salutares problematizações têm gerado muitos escritos e diferentes enfoques sobre o assunto, bem como projetos que já estão mostrando que é possível fazer o diferente no que se refere à educação escolar como um todo e, consequentemente, ao sentido e prática do ato de avaliar dentro da caminhada didático-pedagógica. Acontece que muitas vezes a questão tem sido debatida de forma solta, isolada, razão pela qual não se tem chegado à essência da problemática, ou seja: antes de nos posicionarmos sobre a avaliação e sua função nos processos de ensino-aprendizagem, torna-se primordial a busca de uma maior clareza sobre quais “ensinos” e “aprendizagens” cabe à escola desenvolver; mais ainda: para que se “ensina” e se “aprende” na escola? Assim, por não se ter muito claro qual é o papel sócio-político-pedagógico dos processos de ensino-aprendizagem da e na escola, fica-se “tateando” também sobre a função e a prática da avaliação.
Tomemos como ponto de partida o cotidiano de nossas vidas. Tudo o que somos e fazemos, nossas formas de sentir/pensar/agir são resultantes de atos avaliativos que nós, ou os outros, realizamos a partir de princípios, valores, crenças, interesses, objetivos, motivações... Não vivemos por viver, mas sentimos/pensamos/agimos em função de metas, valores, “verdades” e pessoas; quanto maior a clareza sobre o que queremos e como queremos alcançar a concretização dos nossos objetivos, mais fácil se torna encontrarmos o sentido/signficado das coisas que experienciamos, tendo condições de analisá-las como sendo favoráveis ou não nas buscas e construções em que nos engajamos, sem medo de reconhecer que por vezes os caminhos e as formas precisam ser revistos e replanejados. Constantemente sentimos a necessidade de, dentro do processo específico de cada aspecto do nosso sentir/pensar/agir, emitirmos juízos de valor sobre os mesmos, para diagnosticar, problematizar, rever, decidir, agir, fazer algo desta ou daquela forma; vamos compreendendo “onde estamos” e “como estamos” à luz do que queremos alcançar e da forma como nos propusemos realizá-lo.


- Constituindo-nos Mulheres e Homens... também na escola e pela avaliação.
Na processualidade sócio-histórico-cultural em que vamos constituindo-nos enquanto homens e mulheres, a educação é a mediação fundamental. Só aprendemos a ser humanos, a ser gente, pela educação. Isto faz com que os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos no ambiente escolar tenham que ser assumidos dentro desta perspectiva maior: ensinamos-aprendemos a ser homens e mulheres, a ser gente; os conteúdos, as metodologias e tudo quanto se sente, pensa e faz na educação escolar tem a finalidade de estar a serviço da aprendizagem do humano. Ademais, eles não podem ser tomados e avaliados isoladamente, de forma fragmentada, mas assumidos da sua interrelação com os demais espaços-tempos e circunstâncias em que homens e mulheres vão aprendendo, vão se educando humanamente. O gênero humano não nasce pronto, com o seu “modus vivendi” já estabelecido; a natureza humana é aberta, programada unicamente para aprender, num vir-a-ser que vai sendo construído pela interação de uns com os outros e com mundo.
Nada do que é humano é natural; tudo o que é humano precisa ser aprendido, precisa ser constituído, precisa ser “ensinado-aprendido” coletivamente com uma intencionalidade clara e consciente para todos. Vamos constituindo-nos em homens e mulheres intersubjetivamente, partilhando saberes, sentimentos, sonhos, projetos, conhecimentos e ações pela reciprocidade reflexiva e comunicativa, buscando compreender e assumir a razão de ser de cada coisa, de cada ser, da nossa existência enquanto sentir/pensar/agir consciente e responsável. Ou seja:
                              
                                               No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas   
para mudar. [...] Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar.  De estudar  descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e  distante mundo, alheado de nós e nós dele. (FREIRE, 2006, p. 77)

Talvez tenhamos que começar a refletir um pouco mais sobre estes fundamentos primeiros e mais amplos da educação escolar, para a partir deles repensarmos o papel da avaliação; problematizarmos sobre “por que?” e “para que?” educamos na escola, para a partir daí significar o que nela fazemos, e então “avaliar” o que é importante ou não avaliar na caminhada que educandos e educadores fazemos enquanto coletividade educativa que assume determinados processos de ensino-aprendizagem sabendo a serviço de que e de quem os estamos construindo e/ou ensinando-aprendendo. Na medida em que estas questões forem se clareando, a finalidade da avaliação, os componentes a serem avaliados, as formas de avaliação, os sujeitos da avaliação e o que deve ser feito com os resultados da avaliação passam a ser questões conseqüentes que podem ser resolvidas com maior objetividade e sentido, pois já se sabe para que avaliar, o que avaliar e como agir com os resultados da avaliação.
 Assim, talvez, comecemos a entender que a avaliação da aprendizagem dos conteúdos é apenas um dos aspectos importantes; há muitas outras aprendizagens que também precisam ser avaliadas. Também vai se aprendendo que a aprendizagem é o fim, e que se ela não aconteceu satisfatoriamente conforme a proposta e os objetivos construídos por e para todos – ou pelo menos muito bem esclarecidos –, torna-se necessária uma avaliação profunda também dos processos de ensino, diagnosticando as questões que contribuíram e também aquelas que precisam ser repensadas e refeitas, tanto pelos educandos quanto pelos educadores. Já em 1975, no livro Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos, Paulo Freire insistia:

...Avaliação e não inspeção. [..] Entendida assim, a avaliação não é o ato pelo qual A avalia B. É o ato por meio do qual A e B avaliam juntos uma prática, seu desenvolvimento, os obstáculos ou os erros e equívocos porventura cometidos. Daí seu caráter dialógico.
“Tomando distância” da ação realizada ou realizando-se, os avaliadores a examinam. Desta forma, muita coisa que antes (durante o tempo da ação) não era percebida, agora aparece de forma destacada diante dos avaliadores.
Neste sentido, em lugar de ser um instrumento de fiscalização, a avaliação é a problematização da própria ação. (FREIRE, 2001, 9ª ed., p. 29)

            Quando educando e educadores são os sujeitos da avaliação, ela vai se tornando um processo de problematização dialógica, de autonomia, de co-responsabilidade e de comprometimento com as (re)construções dos diferentes componentes do ensino-aprendizagem a serviço de homens e mulheres que vão se emancipando, aprendendo uns com os outros a ser mais. Trata-se de uma avaliação dialógica, participativa, emancipatória, conscientizadora e cidadã, onde ninguém se sente objeto da avaliação de ninguém, mas todos vão se assumindo como sujeitos-aprendizes, uns mais jovens e iniciantes e outros como “aprendizes há mais tempo”; mas todos como aprendizes uns com os outros. Em vez de ser um ato unilateral, a avaliação vai se constituindo em um processo de aprendizagem e de construção participativa, dialógica, intersubjetiva, a partir da realidade de cada sujeito envolvido, encontrando e tecendo flechas apontadoras de novos caminhos, novas aprendizagens, novas formas de ensinar, novas formas de aprender, novos jeitos de se relacionar e interagir, novas maneiras de sentir/pensar/agir como homens e mulheres.
Isto tudo, para Freire, exige uma constante reflexão crítica e ética sobre a nossa prática docente, sobre o nosso que-fazer com os educandos. Daí que o ideal seria criar formas de os educandos participarem efetivamente da avaliação, uma vez que o trabalho do professor não se dá consigo mesmo, mas com os educandos; “nesta avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades sem as quais não é possível nem ela, a avaliação, nem tampouco o respeito do educando” (FREIRE, 2006, p. 64).  
            Então, em lugar de servir como “camisa de força” nas mãos dos professores, para constatar resultados (que muitas vezes nem os próprios professores sabem para que servem) e classificar (ou excluir?) os alunos em “bons” e “ruins” (aprovados e reprovados) a partir dos juízos e valores assentados nas concepções, posturas e interesses exclusivamente dos professores – ou de grupos de elite que pensam políticas e estratégias de controle e regulação para garantir uma “estratificação social” pela educação –, fazendo com que os alunos vejam estes momentos como castigo, como instrumento usado para punir ou para garantir que a “disciplina” seja garantida em aula, o ato avaliativo torna-se processo dialético e dialógico-reflexivo, passando a fazer parte de todos os momentos e aspectos da caminhada educativa empreendida na escola à luz de um projeto também construído por todos.

- Avaliação como conscientização e emancipação
Não ensinamos-aprendemos para a avaliação, mas avaliamos para melhor ensinar-aprender e para melhor viver; a avaliação não é um fim, e sim um auxiliar dos processos de ensino-aprendizagem e da vida; melhor ainda, é parte integrante da educação e da vida como mais um momento de aprendizagem, reflexão crítica, autonomia, responsabilidade e comprometimento de cada criança, jovem e adulto enquanto sujeito da sua própria história. Essa processualidade dialética e dialógica vai se configurando num movimento de conscientização individual e coletiva enquanto sentir/pensar/agir:
           
A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se “dês-vela” a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, rente ao nos encontramos para analisá-lo. Por esta razão, a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.
Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo.[...]
A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil. (FREIRE, 1980, p. 26)

 Neste movimento contínuo de adentramento e afastamento individual e coletivo, aos poucos vai desaparecendo a necessidade de determinar e especificar momentos e instrumentos específicos de avaliação;  a avaliação torna-se parte integrante das construções e reconstruções que vão sendo realizadas, fazendo com que todos exerçam a sua capacidade de refletir e dizer a palavra, e serem escutados também a partir das suas vivências, concepções e juízos de valores. A avaliação, então, é permanente, gradativa, mediadora, processual, conscientizadora, emancipatória e cidadã; todos são os sujeitos da avaliação porque todos são os sujeitos dos processos de ensino-aprendizagem desde o momento do planejamento, a definição dos “conteúdos”, os enfoques a serem dados aos diferentes saberes e conhecimentos, formas de trabalhar e organizar a concretização do projeto a serviço do qual a educação escolar se coloca.
Ana Maria Saul (1999), ao falar de avaliação emancipatória, conduz-nos na esteira da mesma concepção quando aponta três momentos e/ou etapas da avaliação, ressaltando que estes não são estanques, mas articulados dinamicamente entre si. Primeiro momento: expressão e descrição da realidade, onde se dá a verbalização e problematização do que está acontecendo; segundo momento: crítica do material expresso, procurando fazer uma reflexão sobre a prática e as responsabilidades de cada participante do processo; terceiro momento: criação coletiva, assumindo de forma pessoal e participativa as ações e alterações necessárias para reorganizar e reorientar o processo educativo. Segundo a autora, “a avaliação emancipatória caracteriza-se como um processo de descrição, análise e crítica de uma dada realidade, visando transformá-la. [...] O compromisso principal desta avaliação é o de fazer com que as pessoas direta ou indiretamente envolvidas em uma ação educacional escrevam a sua “própria história” e gerem as suas próprias alternativas de ação” (SAUL, 1999, p. 61).
Ensinar e aprender, assim como participar de tempos-espaços avaliativos, deixam de ser vistos como algo pesado, enfadonho e assustador, ou como uma relação de poder de uns sobre os outros, para pouco a pouco irem se constituindo e sendo assumidos como oportunidade de aprendizagens, reconstruções, problematizações, diálogos, reflexões e decisões que vão sendo construídas coletivamente, ao mesmo tempo que são fundamentais na constituição da identidade e individualidade de cada sujeito homem  e mulher.
Para Luckesi, a avaliação do processo de ensino-aprendizagem tem o papel de diagnosticar e reorientar as ações de todos os envolvidos: educandos e educadores, possibilitando que dialogicamente eles reflitam, repensem e reorganizem suas atividades para garantir que as metas estabelecidas (que em alguns casos também podem ser revistas) sejam alcançadas. Ademais, mesmo tendo clareza do objetivos, nos processos avaliativos é preciso que todos estejam atentos a outros aspectos que vão aparecendo e podem contribuir para que a realidade possa melhor ser descrita, refletida e modificada. Nas palavras do autor, “de fato, a avaliação da aprendizagem deveria servir de suporte para a qualificação daquilo que acontece com o educando[...] A avaliação não deveria ser fonte de decisão sobre o castigo, mas de decisão sobre os caminhos do crescimento sadio e feliz. (LUCKESI, 1998, p. 58).



- “Ser Mais” pela avaliação dialógica e amorosa
Toda atividade didático-pedagógica tem sua centralidade no educando, visando que ele consiga construir com o educador as diferentes aprendizagens da e na complexa tarefa de ir constituindo-se enquanto ser humano, enquanto cidadão. Para tanto, muitas dimensões e aspectos precisam ser contemplados quando avaliamos processos que estão a serviço de homens e mulheres que buscam na educação escolar uma oportunidade para ser mais; é a totalidade do sentir/pensar/agir como humano que vai se envolvendo nos processos de ensino-aprendizagem, ainda que a especificidade da educação escolar seja trabalhar com e a partir dos conhecimentos sistematizados pelas diferentes ciências. Entretanto, não se pode ficar numa atitude reducionista que contempla apenas a perspectiva cognitivo-racional, ou conteudista. Nas palavras de Luckesi,  “o  desenvolvimento do educando significa a formação de suas convicções afetivas, sociais, políticas; significa o desenvolvimento de suas capacidades cognoscitivas e habilidades psicomotoras; enfim, sua capacidade e seu modo de viver” (LUCKESI, 1998, p.126). 
Na escola estudamos não apenas para tirar boas notas ou para ser aprovado para a série seguinte. Na escola vivemos e ensinamos-aprendemos para melhor viver e ser feliz, aprendendo a encontrar a compreensão, a razão de ser, das coisas, dos fatos, do mundo, da natureza, da história, da sociedade, dos seres humanos e da nossa humana existência.

Nos processos de ensino-aprendizagem a avaliação não pode reduzir-se aos resultados alcançados, e sim também levar em consideração o como eles foram sendo (re)construídos, o que também é válido para o que denominamos de “conhecimento científico” das diferentes áreas. Aliás, da escola levamos muito mais as aprendizagens construídas pelas vivências dos processos em que nos envolvemos do que as informações, definições, conceitos, regras, fórmulas... 
Educadores e educandos estamos na escola para, sobretudo, trabalhar com o conhecimento científico, uma vez que esta é a especificidade a partir da qual na escola se procura contribuir com a humanização de homens e mulheres. No entanto, as regras, informações, conceitos ou outras sistematizações são conhecimento com cientificidade porque resultantes de uma busca organizada intencionalmente para responder, através de recursos e procedimentos lógicos e metodológicos, a preocupações, necessidades ou anseios que emergiram da realidade que determinados povos, ou filósofos e/ou cientistas, viviam; assim, as sistematizações “acumuladas” no âmbito das ciências, constituem-se em conhecimento para homens e mulheres de hoje na medida em que forem interrelacionados com a realidade de suas vidas, precisando serem avaliados a partir desta premissa maior. Nesta perspectiva, muitas vezes a maneira como trabalhamos com os diferentes conhecimentos científicos passa a ser mais significativo que as informações e conceitos neles contidos. Não obstante, facilmente se esquece que a gênese do conhecimento tem a ver com o mundo e com a vida, com sua relação com a realidade que historicamente tem desafiado a homens e mulheres nos diferentes tempos-espaços; assim,
Muitas de nossas práticas escolares – a maioria delas – por não levar a sério esta compreensão do fenômeno do conhecimento, escamoteiam-no. Substituem, falsamente, os desafios da realidade por desafios (armadilhas) articulados em “tarefas” e testes ditos “difíceis”. As dificuldades naturais, desafiadoras da imaginação criativa, são substituídas por dificuldades falsas e abstratas, impostas por um modelo autoritário do sistema educacional. O que importa, na escola, na maioria das vezes, não é conhecer o mundo e a realidade, mas “saber responder”, à imagem e semelhança do mestre, as questões que ele coloca. Torna-se, assim, mais importante o autoritarismo do mestre que a verdadeira autoridade da realidade. (LUCKESI et al, 1984, pp. 49/50).

Entretanto, uma nova concepção de escola, conhecimento científico e, conseqüentemente, de avaliação, é possível. Tomemos como exemplo o que Corbisier (apud Luckesi et al, 1984, p. 66) coloca sobre a compreensão filosófica enquanto conhecimento sistematizado: “a filosofia, portanto, não é alheia ou estranha à vida humana, porque é a própria vida humana procurando tomar consciência de si mesma, de sua origem, de sua essência e significação”.  Ou seja, o conhecimento filosófico está aí para ajudar-nos a compreender a nós mesmos e a realidade do mundo que nos rodeia, orientando-no nas nossas escolhas e rumos enquanto homens e mulheres capazes de sentir/pensar/agir autônoma e responsavelmente. No que se refere ao conhecimento científico, Luckesi et al (1984, p. 71) ajuda a esclarecer:
...o conhecimento científico pretende esclarecer as ocorrências factuais do universo, produzindo um entendimento de parcelas do “mundo”, descrevendo-as e criando as conexões lógicas e compreensíveis entre os seus componentes. A partir da identificação descritiva dos dados, estabelece-se um entendimento da realidade, pela verificação de como cada coisa, cada fenômeno se nos dá, possibilitando sua inteligibilidade a partir de seus contornos e elementos constitutivos.

Na escola não ensinamos-aprendemos apenas para conhecer o que os outros pensaram e disseram sobre o mundo, a vida, a realidade, os fatos... Servimo-nos do sentir/pensar/agir sistematizado por outras pessoas para a partir e com estes “conhecimentos” buscar compreender diferentes aspectos e realidades do nosso mundo e da nossa vida, tomando-os como instrumentos que nos ajudem a sobreviver e viver melhor. Assim assumidos, os conhecimentos com os quais trabalhamos nas diferentes áreas científicas contempladas pelos componentes das matrizes curriculares de nossas escolas, vão se constituindo em elementos de libertação; ou melhor: “não há, pois, conhecimento que se faça fora da prática do sujeito com o mundo que o cerca, e ao qual é necessário compreender, pela criação de significação e sentidos” (Ibidem, p. 53).

- “Certo” e “Errado”? Até quando?
Diante da perspectiva acima, como fica a questão das notas, dos conceitos, do “certo” e do “errado”?  Comecemos pelas notas e conceitos: tanto as notas quanto os conceitos (que na maioria das escolas são identificados por percentuais quantitativos), eles são indicativos insuficientes nos processos avaliativos, uma vez que se restringem a quantificar resultados (quase sempre apenas conteudistas) sem expressar o que não foi alcançado e, muito menos, analisar o porquê de não terem sido atingidos os objetivos propostos e como agir para reconstruir o que não aconteceu conforme o planejado. Mas o problema maior ainda pode estar na questão do “certo” e do “errado”; aliás, é preciso refletir sobre a possibilidade de as certezas (sobretudo dos professores) serem mais perigosas do que as incertezas, pois podem conduzir a autoritarismos e criar obstáculos ao diálogo-problematizador e outros procedimentos interativos e formativos.
Na medida em que vamos aprofundando a concepção de conhecimento como “entendimento do mundo”, e não como enfeite e ilustração intelectual ou congnitiva, todas as tentativas de resposta passam a ter seu valor, pois são a manifestação da compreensão possível alcançada até então, ainda que de forma ingênua, acrítica, empírica, ou sem uma fundamentação ou argumentação que consiga se sustentar com um embasamento lógico-metodológico. Trata-se de repostas que estão sendo construídas a partir de determinados questionamentos que brotam do mundo da vida ou que são formulados por pessoas que já são “aprendizes há mais tempo” e tem algumas respostas mais elaboradas e abrangentes, mas não são “os que sabem tudo” e vão ensinar aos “que não sabem”; não são respostas “certas” ou “erradas”, umas melhores e mais importantes que as outras, mas diferentes e que precisam ser problematizadas de uma forma cooperativa e dialógica, procurando mostrar que sócio-historicamente já foram alcançadas outras respostas por pessoas que se dedicaram a investigar mais sistematicamente a busca de entendimento da problemática em questão. Para Hoffmann (1993, p. 148),
...a avaliação, enquanto relação dialógica, vai conceber o conhecimento como apropriação do saber pelo aluno e pelo professor, com ação-reflexão-ação que se passa na sala de aula em direção a um saber aprimorado, enriquecido, carregado de significados, de compreensão. Dessa forma a avaliação passa a exigir do professor uma relação epistemológica com o aluno. Uma conexão entendida como uma reflexão aprofundada sobre as formas como se dá a compreensão do educando sobre o objeto do conhecimento.

  Na práxis didático-pedagógica da sala de aula, o professor pode dialogar com os seus alunos, olhando-os na sua singularidade sócio-histórico-cultural, analisando as respostas dos mesmos sem a necessidade de dizer que a resposta deles é errada; reconhece-a como diferente e mostra – muitas vezes através de comentários escritos sobre e a partir das respostas que vão sendo dadas nos diferentes instrumentos de avaliação – quais são as respostas que a ciência com a qual estão trabalhando está reconhecendo como válida com base em determinados princípios e/ou critérios, ainda que também passível de questionamentos.
Então, cada participante, especialmente o educando, passará a ser olhado e admirado na sua singularidade, sentindo-se respeitado na sua maneira de ser e ver  mundo e a vida, respeitado na sua história.  Assim, pouco a pouco a cultura do autoritarismo, e suas mais variadas formas de manisfestação e discriminação, vão sendo superadas; em seu lugar, educandos e educadores vão aprendendo um diálogo reflexivo também cognitivo-científico, mas sempre a serviço da busca de cada um e de todos poderem ser mais homens e mulheres, reconhecendo que a condição de ser de cada um passa pelo reconhecimento da condição de ser do outro, passa pela valorização e respeito à alteridade. Ou seja: “o diálogo, a compreensão do outro, a solidariedade na produção do saber. O diferente do outro representando o desafio à convivência social, à confrontação de hipóteses, à consistência de argumentação para a produção do saber a transformação da sociedade” (HOFFMANN, 1998, 27).     
Educar e avaliar são, pois, construções intersubjetivas, cooperativas, colaborativas, dialógico-problematizadoras, conscientizadoras e transformadoras, sempre na perspectiva maior de que a escola é lugar de gente que quer aprender a ser mais gente, podendo contar com a contribuição das metodologias e dos conhecimentos das diferentes ciências como explicações e compreensões até então alcançadas sobre “parcelas” do mundo e da vida. Sentir/pensar/agir para mudar a avaliação implica sentir/pensar/agir para mudar a práxis educativa, a maneira de enfocar os conteúdos, os responsáveis pela escolha dos aspectos a serem ensinados-aprendidos e avaliados, a forma de relacionamento entre professores alunos; significa sentir/pensar/agir para mudar o jeito de fazer, ser e viver como coletividade que ensina-aprende na escola, no mundo da vida.
Para finalizar, recorremos novamente Às palavras de Freire:
Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passa por democráticos. A questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do que-fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com. (FREIRE, 2006, p. 116)

Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 34ª ed. SP: Paz e Terra, 2006.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. 9ª ed. SP: Paz e Terra, 2001.
_______. Conscientização. Teoria e prática da libertação. 3ª ed. SP: Editora Moraes, 1980.
HOFFMANN, Jussara. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Educação & Realidade, 1993.
______Pontos e Contrapontos – do pensar ao agir em avaliação. 2ª ed. Porto Alegre: Mediação, 1998.
     LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e profissões. 8ª ed. – São Paulo: Cortez,  
     1998.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer Universidade: uma proposta metodológica. S: Cortez, 1984.





[1] Professor do ADE/CE-UFSM. Professor do PPGE/CE- UFSM. Doutor em educação.
   Email: celsoufsm@gmail.com
*Trabalho apresentado e publicado nos Anais (ISSN 2176-3569) do XIII Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire.
   UNIJUÍ – Campus Santa Rosa, 26 a 28 de maio de 2011.

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