A AVALIAÇÃO COMO
CONSCIENTIZAÇÃO:
vivenciando um
sentir/pensar/agir amoroso, crítico e dialógico-reflexivo*
Celso Ilgo Henz[1]
Já faz algumas décadas que estamos debatendo e refletindo sobre uma das
temáticas centrais nos processos de ensino-aprendizagem: a avaliação. Estas
salutares problematizações têm gerado muitos escritos e diferentes enfoques
sobre o assunto, bem como projetos que já estão mostrando que é possível fazer
o diferente no que se refere à educação escolar como um todo e,
consequentemente, ao sentido e prática do ato de avaliar dentro da caminhada
didático-pedagógica. Acontece que muitas vezes a questão tem sido debatida de
forma solta, isolada, razão pela qual não se tem chegado à essência da
problemática, ou seja: antes de nos posicionarmos sobre a avaliação e sua
função nos processos de ensino-aprendizagem, torna-se primordial a busca de uma
maior clareza sobre quais “ensinos” e “aprendizagens” cabe à escola
desenvolver; mais ainda: para que se “ensina” e se “aprende” na escola? Assim,
por não se ter muito claro qual é o papel sócio-político-pedagógico dos
processos de ensino-aprendizagem da e na escola, fica-se “tateando” também
sobre a função e a prática da avaliação.
Tomemos como ponto de partida o cotidiano de nossas vidas. Tudo o que somos
e fazemos, nossas formas de sentir/pensar/agir são resultantes de atos
avaliativos que nós, ou os outros, realizamos a partir de princípios, valores,
crenças, interesses, objetivos, motivações... Não vivemos por viver, mas
sentimos/pensamos/agimos em função de metas, valores, “verdades” e pessoas;
quanto maior a clareza sobre o que queremos e como queremos alcançar a
concretização dos nossos objetivos, mais fácil se torna encontrarmos o sentido/signficado
das coisas que experienciamos, tendo condições de analisá-las como sendo favoráveis
ou não nas buscas e construções em que nos engajamos, sem medo de reconhecer
que por vezes os caminhos e as formas precisam ser revistos e replanejados.
Constantemente sentimos a necessidade de, dentro do processo específico de cada
aspecto do nosso sentir/pensar/agir, emitirmos juízos de valor sobre os mesmos,
para diagnosticar, problematizar, rever, decidir, agir, fazer algo desta ou
daquela forma; vamos compreendendo “onde estamos” e “como estamos” à luz do que
queremos alcançar e da forma como nos propusemos realizá-lo.
- Constituindo-nos Mulheres e Homens...
também na escola e pela avaliação.
Na processualidade sócio-histórico-cultural em que vamos constituindo-nos
enquanto homens e mulheres, a educação é a mediação fundamental. Só aprendemos
a ser humanos, a ser gente, pela educação. Isto faz com que os processos de
ensino-aprendizagem desenvolvidos no ambiente escolar tenham que ser assumidos
dentro desta perspectiva maior: ensinamos-aprendemos a ser homens e mulheres, a
ser gente; os conteúdos, as metodologias e tudo quanto se sente, pensa e faz na
educação escolar tem a finalidade de estar a serviço da aprendizagem do humano.
Ademais, eles não podem ser tomados e avaliados isoladamente, de forma
fragmentada, mas assumidos da sua interrelação com os demais espaços-tempos e
circunstâncias em que homens e mulheres vão aprendendo, vão se educando
humanamente. O gênero humano não nasce pronto,
com o seu “modus vivendi” já
estabelecido; a natureza humana é aberta, programada unicamente para aprender,
num vir-a-ser que vai sendo
construído pela interação de uns com os outros e com mundo.
Nada do que é humano é natural; tudo o que é humano precisa ser
aprendido, precisa ser constituído, precisa ser “ensinado-aprendido” coletivamente
com uma intencionalidade clara e consciente para todos. Vamos constituindo-nos
em homens e mulheres intersubjetivamente, partilhando saberes, sentimentos,
sonhos, projetos, conhecimentos e ações pela reciprocidade reflexiva e
comunicativa, buscando compreender e assumir a razão de ser de cada coisa, de cada ser, da nossa existência
enquanto sentir/pensar/agir consciente e responsável. Ou seja:
No mundo da História, da
cultura, da política, constato não
para me adaptar, mas
para mudar.
[...] Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra.
Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando
apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão,
escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas
insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente,
de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele.
(FREIRE, 2006, p. 77)
Talvez tenhamos que começar a refletir um pouco mais sobre estes
fundamentos primeiros e mais amplos da educação escolar, para a partir deles
repensarmos o papel da avaliação; problematizarmos sobre “por que?” e “para
que?” educamos na escola, para a partir daí significar o que nela fazemos,
e então “avaliar” o que é importante ou não avaliar na caminhada que
educandos e educadores fazemos enquanto coletividade educativa que assume
determinados processos de ensino-aprendizagem sabendo a serviço de que e
de quem os estamos construindo e/ou ensinando-aprendendo. Na medida em
que estas questões forem se clareando, a finalidade da avaliação, os
componentes a serem avaliados, as formas de avaliação, os sujeitos da avaliação
e o que deve ser feito com os resultados da avaliação passam a ser questões
conseqüentes que podem ser resolvidas com maior objetividade e sentido, pois já
se sabe para que avaliar, o que avaliar e como agir com os resultados da
avaliação.
Assim, talvez, comecemos a
entender que a avaliação da aprendizagem dos conteúdos é apenas um dos aspectos
importantes; há muitas outras aprendizagens que também precisam ser avaliadas.
Também vai se aprendendo que a aprendizagem é o fim, e que se ela não aconteceu
satisfatoriamente conforme a proposta e os objetivos construídos por e para
todos – ou pelo menos muito bem esclarecidos –, torna-se necessária uma
avaliação profunda também dos processos de ensino, diagnosticando as questões
que contribuíram e também aquelas que precisam ser repensadas e refeitas, tanto
pelos educandos quanto pelos educadores. Já em 1975, no livro Ação Cultural
para a Liberdade e Outros Escritos, Paulo Freire insistia:
...Avaliação e não inspeção. [..] Entendida assim, a
avaliação não é o ato pelo qual A avalia B. É o ato por meio do qual A e B
avaliam juntos uma prática, seu desenvolvimento, os obstáculos ou os erros e
equívocos porventura cometidos. Daí seu caráter dialógico.
“Tomando
distância” da ação realizada ou realizando-se, os avaliadores a examinam. Desta
forma, muita coisa que antes (durante o tempo da ação) não era percebida, agora
aparece de forma destacada diante dos avaliadores.
Neste sentido, em lugar de ser um instrumento de
fiscalização, a avaliação é a problematização da própria ação. (FREIRE, 2001,
9ª ed., p. 29)
Quando educando e educadores são os
sujeitos da avaliação, ela vai se tornando um processo de problematização
dialógica, de autonomia, de co-responsabilidade e de comprometimento com as
(re)construções dos diferentes componentes do ensino-aprendizagem a serviço de
homens e mulheres que vão se emancipando, aprendendo uns com os outros a ser mais. Trata-se de uma avaliação
dialógica, participativa, emancipatória, conscientizadora e cidadã, onde
ninguém se sente objeto da avaliação de ninguém, mas todos vão se assumindo
como sujeitos-aprendizes, uns mais jovens e iniciantes e outros como
“aprendizes há mais tempo”; mas todos como aprendizes uns com os outros.
Em vez de ser um ato unilateral, a avaliação vai se constituindo em um processo
de aprendizagem e de construção participativa, dialógica, intersubjetiva, a
partir da realidade de cada sujeito envolvido, encontrando e tecendo flechas
apontadoras de novos caminhos, novas aprendizagens, novas formas de ensinar,
novas formas de aprender, novos jeitos de se relacionar e interagir, novas
maneiras de sentir/pensar/agir como homens e mulheres.
Isto tudo, para Freire, exige uma constante reflexão crítica e ética sobre
a nossa prática docente, sobre o nosso que-fazer com os educandos. Daí que o
ideal seria criar formas de os educandos participarem efetivamente da
avaliação, uma vez que o trabalho do professor não se dá consigo mesmo, mas com
os educandos; “nesta avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade
de uma série de virtudes ou qualidades sem as quais não é possível nem ela, a
avaliação, nem tampouco o respeito do educando” (FREIRE, 2006, p. 64).
Então, em lugar de servir como
“camisa de força” nas mãos dos professores, para constatar resultados (que
muitas vezes nem os próprios professores sabem para que servem) e classificar
(ou excluir?) os alunos em “bons” e “ruins” (aprovados e reprovados) a partir
dos juízos e valores assentados nas concepções, posturas e interesses
exclusivamente dos professores – ou de grupos de elite que pensam políticas e
estratégias de controle e regulação para garantir uma “estratificação social”
pela educação –, fazendo com que os alunos vejam estes momentos como castigo,
como instrumento usado para punir ou para garantir que a “disciplina” seja
garantida em aula, o ato avaliativo torna-se processo dialético e
dialógico-reflexivo, passando a fazer parte de todos os momentos e aspectos da
caminhada educativa empreendida na escola à luz de um projeto também construído
por todos.
- Avaliação como conscientização e
emancipação
Não ensinamos-aprendemos para a avaliação, mas avaliamos para melhor
ensinar-aprender e para melhor viver; a avaliação não é um fim, e sim um
auxiliar dos processos de ensino-aprendizagem e da vida; melhor ainda, é parte
integrante da educação e da vida como mais um momento de aprendizagem, reflexão
crítica, autonomia, responsabilidade e comprometimento de cada criança, jovem e
adulto enquanto sujeito da sua própria história. Essa processualidade dialética
e dialógica vai se configurando num movimento de conscientização individual e
coletiva enquanto sentir/pensar/agir:
A conscientização é, neste sentido, um teste de
realidade. Quanto mais conscientização, mais se “dês-vela” a realidade, mais se
penetra na essência fenomênica do objeto, rente ao nos encontramos para
analisá-lo. Por esta razão, a conscientização não consiste em “estar frente à
realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não
pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade
dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o
mundo que caracteriza os homens.
Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso
histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história,
implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo.[...]
A conscientização, que se apresenta como um processo
num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte,
durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil. (FREIRE, 1980,
p. 26)
Neste movimento contínuo de
adentramento e afastamento individual e coletivo, aos poucos vai desaparecendo
a necessidade de determinar e especificar momentos e instrumentos específicos de
avaliação; a avaliação torna-se parte
integrante das construções e reconstruções que vão sendo realizadas, fazendo
com que todos exerçam a sua capacidade de refletir e dizer a palavra, e serem escutados também a partir das suas
vivências, concepções e juízos de valores. A avaliação, então, é permanente,
gradativa, mediadora, processual, conscientizadora, emancipatória e cidadã;
todos são os sujeitos da avaliação porque todos são os sujeitos dos processos
de ensino-aprendizagem desde o momento do planejamento, a definição dos
“conteúdos”, os enfoques a serem dados aos diferentes saberes e conhecimentos,
formas de trabalhar e organizar a concretização do projeto a serviço do qual a
educação escolar se coloca.
Ana Maria Saul (1999), ao falar de avaliação emancipatória, conduz-nos na
esteira da mesma concepção quando aponta três momentos e/ou etapas da
avaliação, ressaltando que estes não são estanques, mas articulados
dinamicamente entre si. Primeiro momento: expressão e descrição da realidade,
onde se dá a verbalização e problematização do que está acontecendo; segundo
momento: crítica do material expresso, procurando fazer uma reflexão sobre a
prática e as responsabilidades de cada participante do processo; terceiro
momento: criação coletiva, assumindo de forma pessoal e participativa as ações
e alterações necessárias para reorganizar e reorientar o processo educativo.
Segundo a autora, “a avaliação emancipatória caracteriza-se como um processo de
descrição, análise e crítica de uma dada realidade, visando transformá-la.
[...] O compromisso principal desta avaliação é o de fazer com que as pessoas
direta ou indiretamente envolvidas em uma ação educacional escrevam a sua
“própria história” e gerem as suas próprias alternativas de ação” (SAUL, 1999,
p. 61).
Ensinar e aprender, assim como participar de tempos-espaços avaliativos,
deixam de ser vistos como algo pesado, enfadonho e assustador, ou como uma
relação de poder de uns sobre os outros, para pouco a pouco irem se
constituindo e sendo assumidos como oportunidade de aprendizagens,
reconstruções, problematizações, diálogos, reflexões e decisões que vão sendo
construídas coletivamente, ao mesmo tempo que são fundamentais na constituição
da identidade e individualidade de cada sujeito homem e mulher.
Para Luckesi, a avaliação do processo de
ensino-aprendizagem tem o papel de diagnosticar e reorientar as ações de todos
os envolvidos: educandos e educadores, possibilitando que dialogicamente eles
reflitam, repensem e reorganizem suas atividades para garantir que as metas
estabelecidas (que em alguns casos também podem ser revistas) sejam alcançadas.
Ademais, mesmo tendo clareza do objetivos, nos processos avaliativos é preciso
que todos estejam atentos a outros aspectos que vão aparecendo e podem
contribuir para que a realidade possa melhor ser descrita, refletida e
modificada. Nas palavras do autor, “de fato, a avaliação da aprendizagem deveria servir de
suporte para a qualificação daquilo que acontece com o educando[...] A
avaliação não deveria ser fonte de decisão sobre o castigo, mas de decisão
sobre os caminhos do crescimento sadio e feliz. (LUCKESI, 1998, p. 58).
- “Ser Mais” pela avaliação dialógica e amorosa
Toda atividade didático-pedagógica tem sua
centralidade no educando, visando que ele consiga construir com o
educador as diferentes aprendizagens da e na complexa tarefa de ir
constituindo-se enquanto ser humano, enquanto cidadão. Para tanto, muitas
dimensões e aspectos precisam ser contemplados quando avaliamos processos que
estão a serviço de homens e mulheres que buscam na educação escolar uma
oportunidade para ser mais; é a
totalidade do sentir/pensar/agir como humano que vai se envolvendo nos
processos de ensino-aprendizagem, ainda que a especificidade da educação
escolar seja trabalhar com e a partir dos conhecimentos sistematizados pelas
diferentes ciências. Entretanto, não se pode ficar numa atitude reducionista
que contempla apenas a perspectiva cognitivo-racional, ou conteudista. Nas
palavras de Luckesi,
“o desenvolvimento do educando significa a
formação de suas convicções afetivas, sociais, políticas; significa o
desenvolvimento de suas capacidades cognoscitivas e habilidades psicomotoras;
enfim, sua capacidade e seu modo de viver” (LUCKESI, 1998, p.126).
Na escola estudamos não apenas para tirar boas
notas ou para ser aprovado para a série seguinte. Na escola vivemos e
ensinamos-aprendemos para melhor viver e ser feliz, aprendendo a encontrar a
compreensão, a razão de ser, das
coisas, dos fatos, do mundo, da natureza, da história, da sociedade, dos seres
humanos e da nossa humana existência.
Nos processos de ensino-aprendizagem a
avaliação não pode reduzir-se aos resultados alcançados, e sim também levar em
consideração o como eles foram sendo (re)construídos, o que também é
válido para o que denominamos de “conhecimento científico” das diferentes
áreas. Aliás, da escola levamos muito mais as aprendizagens construídas pelas
vivências dos processos em que nos envolvemos do que as informações,
definições, conceitos, regras, fórmulas...
Educadores e
educandos estamos na escola para, sobretudo, trabalhar com o conhecimento
científico, uma vez que esta é a especificidade a partir da qual na escola se
procura contribuir com a humanização de homens e mulheres. No entanto, as
regras, informações, conceitos ou outras sistematizações são conhecimento com
cientificidade porque resultantes de uma busca organizada intencionalmente para
responder, através de recursos e procedimentos lógicos e metodológicos, a
preocupações, necessidades ou anseios que emergiram da realidade que
determinados povos, ou filósofos e/ou cientistas, viviam; assim, as
sistematizações “acumuladas” no âmbito das ciências, constituem-se em
conhecimento para homens e mulheres de hoje na medida em que forem
interrelacionados com a realidade de suas vidas, precisando serem avaliados a
partir desta premissa maior. Nesta perspectiva, muitas vezes a maneira como
trabalhamos com os diferentes conhecimentos científicos passa a ser mais
significativo que as informações e conceitos neles contidos. Não obstante,
facilmente se esquece que a gênese do conhecimento tem a ver com o mundo e com
a vida, com sua relação com a realidade que historicamente tem desafiado a homens
e mulheres nos diferentes tempos-espaços; assim,
Muitas de nossas práticas escolares – a
maioria delas – por não levar a sério esta compreensão do fenômeno do
conhecimento, escamoteiam-no. Substituem, falsamente, os desafios da realidade
por desafios (armadilhas) articulados em “tarefas” e testes ditos “difíceis”.
As dificuldades naturais, desafiadoras da imaginação criativa, são substituídas
por dificuldades falsas e abstratas, impostas por um modelo autoritário do
sistema educacional. O que importa, na escola, na maioria das vezes, não é
conhecer o mundo e a realidade, mas “saber responder”, à imagem e semelhança do
mestre, as questões que ele coloca. Torna-se, assim, mais importante o
autoritarismo do mestre que a verdadeira autoridade da realidade. (LUCKESI et
al, 1984, pp. 49/50).
Entretanto, uma nova concepção de
escola, conhecimento científico e, conseqüentemente, de avaliação, é possível.
Tomemos como exemplo o que Corbisier (apud Luckesi et al, 1984, p. 66) coloca
sobre a compreensão filosófica enquanto conhecimento sistematizado: “a filosofia, portanto, não é alheia ou estranha
à vida humana, porque é a própria vida humana procurando tomar consciência de
si mesma, de sua origem, de sua essência e significação”. Ou seja, o conhecimento filosófico está aí
para ajudar-nos a compreender a nós mesmos e a realidade do mundo que nos
rodeia, orientando-no nas nossas escolhas e rumos enquanto homens e mulheres
capazes de sentir/pensar/agir autônoma e responsavelmente. No que se refere ao
conhecimento científico, Luckesi et al (1984, p. 71) ajuda a esclarecer:
...o conhecimento científico pretende
esclarecer as ocorrências factuais do universo, produzindo um entendimento de
parcelas do “mundo”, descrevendo-as e criando as conexões lógicas e
compreensíveis entre os seus componentes. A partir da identificação descritiva
dos dados, estabelece-se um entendimento da realidade, pela verificação de como
cada coisa, cada fenômeno se nos dá, possibilitando sua inteligibilidade a
partir de seus contornos e elementos constitutivos.
Na escola não
ensinamos-aprendemos apenas para conhecer o que os outros pensaram e disseram
sobre o mundo, a vida, a realidade, os fatos... Servimo-nos do
sentir/pensar/agir sistematizado por outras pessoas para a partir e com
estes “conhecimentos” buscar compreender diferentes aspectos e realidades do
nosso mundo e da nossa vida, tomando-os como instrumentos que nos ajudem a
sobreviver e viver melhor. Assim assumidos, os conhecimentos com os quais
trabalhamos nas diferentes áreas científicas contempladas pelos componentes das
matrizes curriculares de nossas escolas, vão se constituindo em elementos de
libertação; ou melhor: “não há, pois, conhecimento que se faça fora da prática
do sujeito com o mundo que o cerca, e ao qual é necessário compreender, pela
criação de significação e sentidos” (Ibidem, p. 53).
- “Certo” e
“Errado”? Até quando?
Diante da perspectiva acima, como fica a questão
das notas, dos conceitos, do “certo” e do “errado”? Comecemos pelas notas e conceitos: tanto as
notas quanto os conceitos (que na maioria das escolas são identificados por
percentuais quantitativos), eles são indicativos insuficientes nos processos
avaliativos, uma vez que se restringem a quantificar resultados (quase sempre
apenas conteudistas) sem expressar o que não foi alcançado e, muito menos,
analisar o porquê de não terem sido atingidos os objetivos propostos e como
agir para reconstruir o que não aconteceu conforme o planejado. Mas o problema
maior ainda pode estar na questão do “certo” e do “errado”; aliás, é preciso
refletir sobre a possibilidade de as certezas (sobretudo dos professores) serem
mais perigosas do que as incertezas, pois podem conduzir a autoritarismos e
criar obstáculos ao diálogo-problematizador e outros procedimentos interativos
e formativos.
Na medida em que vamos aprofundando a concepção
de conhecimento como “entendimento do mundo”, e não como enfeite e ilustração
intelectual ou congnitiva, todas as tentativas de resposta passam a ter seu
valor, pois são a manifestação da compreensão possível alcançada até então,
ainda que de forma ingênua, acrítica, empírica, ou sem uma fundamentação ou
argumentação que consiga se sustentar com um embasamento lógico-metodológico.
Trata-se de repostas que estão sendo construídas a partir de determinados
questionamentos que brotam do mundo da vida ou que são formulados por pessoas
que já são “aprendizes há mais tempo” e tem algumas respostas mais elaboradas e
abrangentes, mas não são “os que sabem tudo” e vão ensinar aos “que não sabem”;
não são respostas “certas” ou “erradas”, umas melhores e mais importantes que
as outras, mas diferentes e que precisam ser problematizadas de uma forma
cooperativa e dialógica, procurando mostrar que sócio-historicamente já foram
alcançadas outras respostas por pessoas que se dedicaram a investigar mais
sistematicamente a busca de entendimento da problemática em questão. Para
Hoffmann (1993, p. 148),
...a avaliação, enquanto relação
dialógica, vai conceber o conhecimento como apropriação do saber pelo aluno e
pelo professor, com ação-reflexão-ação que se passa na sala de aula em direção
a um saber aprimorado, enriquecido, carregado de significados, de compreensão.
Dessa forma a avaliação passa a exigir do professor uma relação epistemológica
com o aluno. Uma conexão entendida como uma reflexão aprofundada sobre as
formas como se dá a compreensão do educando sobre o objeto do conhecimento.
Na práxis didático-pedagógica da sala de aula,
o professor pode dialogar com os seus alunos, olhando-os na sua singularidade
sócio-histórico-cultural, analisando as respostas dos mesmos sem a necessidade
de dizer que a resposta deles é errada; reconhece-a como diferente e mostra –
muitas vezes através de comentários escritos sobre e a partir das respostas que
vão sendo dadas nos diferentes instrumentos de avaliação – quais são as
respostas que a ciência com a qual estão trabalhando está reconhecendo como
válida com base em determinados princípios e/ou critérios, ainda que também
passível de questionamentos.
Então, cada participante, especialmente o
educando, passará a ser olhado e admirado na sua singularidade, sentindo-se
respeitado na sua maneira de ser e ver
mundo e a vida, respeitado na sua história. Assim, pouco a pouco a
cultura do autoritarismo, e suas mais variadas formas de manisfestação e
discriminação, vão sendo superadas; em seu lugar, educandos e educadores vão
aprendendo um diálogo reflexivo também cognitivo-científico, mas sempre a
serviço da busca de cada um e de todos poderem ser mais homens e mulheres, reconhecendo que a condição de ser de
cada um passa pelo reconhecimento da condição de ser do outro, passa pela
valorização e respeito à alteridade. Ou seja: “o diálogo, a compreensão do
outro, a solidariedade na produção do saber. O diferente do outro representando o desafio à convivência social, à
confrontação de hipóteses, à consistência de argumentação para a produção do
saber a transformação da sociedade” (HOFFMANN, 1998, 27).
Educar e avaliar
são, pois, construções intersubjetivas, cooperativas, colaborativas,
dialógico-problematizadoras, conscientizadoras e transformadoras, sempre na perspectiva
maior de que a escola é lugar de gente que quer aprender a ser mais gente, podendo contar com a
contribuição das metodologias e dos conhecimentos das diferentes ciências como
explicações e compreensões até então alcançadas sobre “parcelas” do mundo e da
vida. Sentir/pensar/agir para mudar a avaliação implica sentir/pensar/agir para
mudar a práxis educativa, a maneira de enfocar os conteúdos, os responsáveis
pela escolha dos aspectos a serem ensinados-aprendidos e avaliados, a forma de
relacionamento entre professores alunos; significa sentir/pensar/agir para
mudar o jeito de fazer, ser e viver como coletividade que ensina-aprende na
escola, no mundo da vida.
Para finalizar,
recorremos novamente Às palavras de Freire:
Os sistemas de avaliação pedagógica de
alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos
verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passa por democráticos. A
questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos
da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto
necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às
vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão
e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do que-fazer de
sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da
domesticação. Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com. (FREIRE,
2006, p. 116)
Referências
Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários
à prática educativa. 34ª ed. SP: Paz e Terra, 2006.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros
escritos. 9ª ed. SP: Paz e Terra, 2001.
_______. Conscientização. Teoria e prática da
libertação. 3ª ed. SP: Editora Moraes, 1980.
HOFFMANN, Jussara. Avaliação mediadora: uma prática em
construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Educação &
Realidade, 1993.
______Pontos e Contrapontos – do pensar ao agir em
avaliação. 2ª ed. Porto Alegre: Mediação, 1998.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação
da aprendizagem escolar: estudos e profissões. 8ª ed. – São Paulo: Cortez,
1998.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer Universidade: uma proposta
metodológica. S: Cortez, 1984.
[1]
Professor do ADE/CE-UFSM. Professor do PPGE/CE- UFSM. Doutor em educação.
Email:
celsoufsm@gmail.com
*Trabalho apresentado e publicado nos Anais (ISSN
2176-3569) do XIII Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire.
UNIJUÍ –
Campus Santa Rosa, 26 a 28 de maio de 2011.
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