Dialogando sobre
cinco dimensões para (re)humanizar a educação[1]
Celso Ilgo Henz[2]
A espécie humana
precisa aprender a se humanizar, o que se dá a partir da realidade do mundo que
experimenta, na qual e com a qual homens e mulheres se constituem em reciprocidades
reflexivas e comunicativas. O gênero humano é o único dentre as espécies vivas
que não tem seu modus vivendi já estabelecido ao nascer; tudo o que é
humano precisa ser aprendido, precisa ser constituído socioculturalmente. Mais: é pela educação que gente humaniza
gente. Se a humanização fora do convívio social é inviável, também é pertinente
reconhecer que nenhum relacionamento, nenhuma organização social e política,
nenhuma forma de sentir/pensar/agir dispensa uma aprendizagem, uma educação
para e pela convivência dos seres humanos uns com os outros e com o mundo
circundante. Ela é o próprio processo pelo qual os seres humanos vão se constituindo
a partir e por meio da interação com o mundo circunjacente e com os demais
membros da sua coletividade.
Então, mesmo que
nas escolas e na sociedade ainda não tenham ocorrido as mudanças que, muitas
vezes, sonhamos, “existe algo que pode
mudar...: é o modo de agir dos
professores, sua maneira de relacionar-se com os pais e as crianças, os
objetivos do trabalho, a maneira de enforcar os conteúdos” (NIDELCOFF, 1996, p.
19). Ainda podemos fazer a diferença, contribuindo para que a riqueza e o encantamento
da existenciação humana brotem e se mantenham nos corpos conscientes de educandos(as) e educadores(as).
Por viverem num mundo multidimensional e complexo, com uma vida
marcada pela simultaneidade entre o particular e o plural, homens e mulheres
começam a sentir a necessidade de desenvolver uma razão-emoção capaz de dar unidade
às diferentes relações, lógicas e perspectivas da vida e do mundo. Muitas
dimensões e aspectos da humanização escapam aos domínios da ciência e da
técnica, desafiando-os(as) a descobrirem outros caminhos para desvendarem e significarem
a si mesmos(as) e à realidade circundante, seja ela natural, cultural,
afetivo-emocional, social, econômica, política, científica ou poética. Não
basta uma razão cognitivo-técnico-instrumental, porque a vida é mais e maior,
precisando de outras referências (éticas e estéticas) para nos ajudar a
descobrir as pessoas e as coisas na sua complexidade e dentro de uma totalidade
maior. Trata-se de resgatar a poesia, o encantamento, a imaginação, a intuição,
o sonho, a reflexão, enfim, a razão-emoção como um todo, mergulhando na
intimidade das coisas, dos fatos, dos seres humanos, da vida, para ir além da
mera constatação e descrição, fazendo emergir um sentir/pensar/agir como
manifestação da razão de ser de cada
coisa, de cada ser, da existência humana. Enquanto as ciências, em nome da
“objetividade”, própria do cientificismo positivista, deixam passar os
“detalhes”, a poesia continua falando dos homens e das mulheres, da vida, do
amor, da beleza, da morte, da esperança, do inacabado, da presença dos(as)
outros(as) em nossos sentimentos, sonhos, idéias, formas de ser e viver; vai
declamando a intersubjetividade que constitui a subjetividade, num mundo que
também vai se configurando interativamente, convidando-nos a descobrir novos
sentidos, novas relações, novos horizontes. Segundo Edgar Morin (2001, pp.
38/39),
Unidades complexas, como o ser humano ou a
sociedade, são multidimensionais: dessa forma, o ser humano é ao mesmo tempo
biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as
dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa... O conhecimento
pertinente deve reconhecer esse caráter multidimensional e nele inserir estes
dados: não apenas não se poderia isolar uma parte do todo, mas as partes umas
das outras. [...] Em conseqüência, a educação deve promover a “inteligência
geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e
dentro da concepção global.
Na perspectiva
de uma ética universal do ser humano, necessária
para uma convivência e uma educação humana e humanizadora, propomos que nós, educadores
e educadoras, busquemos organizar e desenvolver, com os(as)
educandos(as), práxis educativas que
entrelacem, no mínimo, cinco dimensões: a ético-política, a técnico-científica,
a epistemológica, a estético-afetiva e a pedagógica. Assim, estaremos trabalhando e educando, inspirando-nos
na perspectiva freireana, a serviço da aprendizagem de corpos conscientes em inconcluso e permanente processo de
humanização, numa história que também não está dada previamente e nem acabada,
mas que passa a ser compreendida como possibilidade,
cujas situações-limites e
obstáculos se transformam em desafios para a construção coletiva de inéditos-viáveis para uma “genteidade” e
uma sociedade em que todos e todas tenham condições de ser mais e gostar de ser
gente.
- Dimensão ético-política: as escolas e o que nelas ensinamos-aprendemos não têm
fim em si mesmo, mas estão a serviço de um tipo de homem e mulher que vai se
constituindo socioculturalmente dentro de uma sociedade política e
economicamente organizada. Daí a importância de professores(as) e alunos(as)
sabermos a serviço de qual “genteidade” e de qual sociedade estamos nos
colocando nos processos de ensino-aprendizagem, conscientes de que toda ação
educativa tem uma intencionalidade. Mais ainda: as relações sociais e humanas
pretendidas precisam ser assumidas e vividas coerentemente no cotidiano das
escolas e das nossas vidas, buscando construir estruturas e relações de poder
que superem a dominação e a subalternidade, ensinando-aprendendo democracia e
cidadania pela vivência. Com a responsabilidade de desenvolver uma atividade
pedagógica e científica, a função da escola (e dos/as professores/as) é política
e social. Nas palavras de Freire (1997, p. 47), “a solidariedade social e
política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos
arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma
prática de real importância”.
Nos encontros de formação continuada com os(as)
colegas professores(as) da Educação Básica de Santa Maria e Região, muitas
vezes nos é relatado que "a
faculdade não nos prepara para trabalhar com a formação integral do ser
humano". Por outro lado, também constatamos o quanto é difícil, para
nós educadores(as), nos colocarmos numa atitude de abertura e atenção, com
sensibilidade, questionamento e reflexão, para irmos aprendendo a desvelar e reconhecer, dialética e criticamente, a
função social de determinadas formas de conhecimento e práticas educativas,
relacionando as suas prioridades e direcionamentos com a totalidade dos
processos sócio-históricos do significado e desenvolvimento da cidadania de
homens e mulheres. O desafio é ir construindo, coerentemente, algumas
categorias e princípios que nos ajudem a assumir as escolas como espaço-tempos
em que vamos aprendendo práticas pedagógicas e sociais, enquanto modos de
sentir/pensar/agir, que tanto podem ser de dominação ou de libertação,
entendendo que, como atores sociais, construímos e somos construídos pelos
processos sócio-histórico-culturais dos quais fazemos parte. Ou seja,
não posso ser
professor sem me pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou
relutância minha maneira de ser, de
pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a
maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu desempenho.
Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais deva ser a de procurar a
aproximação cada vez maior entre o que digo e o que faço, entre o que pareço
ser o que realmente estou sendo (FREIRE, 1997, p. 108).
Exercitar o
perguntar e o deixar-se ser perguntado faz parte de práticas educativas que se
pretendem dialógicas, cidadãs e democráticas, re-inventando as relações de
poder para colaborar com a construção de uma sociedade também democrática, pois
a cidadania é uma construção intencionada jamais terminada, que “demanda engajamento, clareza política,
coerência, decisão. Por isso mesmo é que uma educação democrática não se pode
realizar à parte de uma educação da cidadania e para ela” (FREIRE, 1993, p.
119) .
- Dimensão técnico-científica: o domínio
técnico-científico é uma das especificidades da educação escolar, sendo
condição necessária (mas não suficiente) para quem assume o ofício de
educador(a). Ele precisa ser assumido com rigorosidade, buscando sua razão de ser dentro da totalidade
sócio-histórica em que foi produzido, mas não como “mera transmissão” e também
jamais desligado do mundo da vida das pessoas envolvidas na práxis educativa em processo, sob pena
de cair-se num cientificismo estéril, e os “novos conhecimentos” (conteúdos
conceituais) não terem sentido e importância para que todos(as) possam ser mais homens e ser mais mulheres.
No que diz
respeito aos “novos conhecimentos” (ou conteúdos científicos), eles precisam
vir ao encontro da realidade do mundo da vida e dos saberes que todos(as) já
trazem para o processo em sala de aula, numa relação dialógica de uma
verdadeira comunidade de aprendizagem crítico-reflexiva, não apenas
descrevendo-os conceitualmente, mas redizendo-os e re-significando-os sócio-histórico-culturalmente.
Mais que repetir pacientemente, sem alcançar uma real compreensão do
significado das teorias e conteúdos-conceituais, trata-se de desvelar,
re-escrever e re-criar o “texto” ou a “lição”, como sujeitos inteligentes, em
função da realidade vivida, em função dos sonhos e projetos daqueles e daquelas
com quem estamos interagindo político-pedagogicamente.
Não se trata de
negar a importância da aprendizagem da lecto-escrita e dos conhecimentos e
técnicas historicamente construídos e acumulados pela humanidade, mas
abordá-los de forma crítica, compreendendo-os nas suas relações com os fatores
econômicos, sociais, políticos e culturais do momento e dos lugares em que
foram gerados, e confrontá-los com a situação sócio-econômico-político-cultural
das pessoas envolvidas no novo processo de aprendizagem; isto possibilita a sua
re-invenção, construindo um novo sentido
existencial pela relação dos conteúdos conceituais com a prática e a
experiência do mundo dos(as) educandos(as) e dos(as) educadores(as).
Isso demanda
tempo para dialogar, “tomar distância”, problematizar, refletir e buscar
cooperativamente a apreensão crítica das idéias dos(as) autores(as), para
relacioná-las com as idéias dos(as) educandos(as) e educadores(as), sempre
situando a todas dentro dos seus contextos para desvelar e apreender o
movimento dinâmico e dialético entre a palavra e o mundo, buscando as raízes do
conhecimento a partir das condições em que foi gerado. A rigorosidade
científica requer que assumamos que nenhum conhecimento é neutro, mas é
sistematizado como “mecanismo de compreensão e transformação do mundo”. “Não há, pois, conhecimento que se faça fora
da prática do sujeito com o mundo que o cerca, e ao qual é necessário
compreender, pela criação de significados e sentidos” (LUCKESI et al., 1984, p.
53).
Alcançar a
compreensão profunda dos conteúdos, da realidade e das pessoas, consiste numa
reflexão e tomada de consciência que se manifesta em palavras e atitudes frente
ao conhecimento, ao mundo e às pessoas; implica procurar curiosa e
rigorosamente onde os mesmos se geraram e/ou onde e para quê pretendem
interferir.
- Dimensão Epistemológica: Ira Shor,
dialogando com Freire, no livro “Medo e Ousadia. O Cotidiano do Professor”
(FREIRE, 1996, p. 15), faz a seguinte afirmação:
O rigor
é um desejo de saber, uma busca de resposta, um método critico de aprender.
Talvez o rigor seja, também, uma forma de comunicação que provoca o outro a
participar, ou inclui o outro numa busca ativa. Quem sabe essa seja a razão
pela qual tanta educação formal nas salas de aula não consiga motivar os
estudantes. Os estudantes são excluídos da busca, a atividade do rigor. As
respostas lhes são dadas para que as memorizem. O conhecimento lhes é dado como
um cadáver de informação – um corpo morto de conhecimento – e não uma conexão
viva com a realidade deles.
Trabalhando com
e a partir dos conhecimentos já sistematizados, educandos(as) e educadores(as)
vão refazendo a gênese produtora de tais conhecimentos na pluralidade das suas
inter-relações, possibilitando assim a construção de novos conhecimentos a
partir do que outros(as) investigaram e sistematizaram. Aprender a “tomar
distância” daquilo que pensamos demasiadamente seguro em nossas verdades, em
nossas convicções, crenças, experiências e mundo da vida, ajudará a encontrar
e/ou construir a raison d’être do
objeto em questão, fazendo perceber a pluralidade de relações que o constituem
e significam, indo além da mera descrição empírica ou conceitual.
Educadores(as) e educandos(as) começam a re-dizer e re-criar o dito e o feito,
tornando-se sujeitos do seu ato cognoscente e da sua história: “educador e
educandos, co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos
são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la,
mas também no de recriar este conhecimento” (FREIRE, 1998, pp. 55/56).
Descobrem-se sendo homens e mulheres num mundo que é feito e significado pelo
trabalho, pela linguagem, pelas emoções, pelos sentimentos, pelas convicções,
pelas reflexões, pelas decisões e ações de seres humanos, para que
historicamente pudessem ir se humanizando, sobretudo pelo assombrar-se, pela
coragem do questionamento crítico, do diálogo problematizador; pela capacidade
e ousadia de conhecer para compreender e transformar.
No livro
dialogado com Paulo Freire, sobre a alfabetização enquanto processo de
capacitação para ler o mundo e ler a palavra, Donaldo Macedo afirma que sempre
se apreende mais facilmente quando a compreensão do diferente e/ou novo toma
como ponto de partida algo que já é conhecido do aprendiz: “o conhecimento de
um conhecimento anterior, obtido pelos educandos como resultado da análise da
práxis em seu contexto social, abre para eles a possibilidade de um novo
conhecimento” (MACEDO. In FREIRE; MACEDO, 1994, p. 105).
Para tanto, é
fundamental substituir a “pedagogia da resposta” e da “transmissão de
conteúdos” pela “pedagogia da pergunta”, para aguçar a curiosidade
epistemológica e a criatividade em educandos(as) e educadores(as). Neste
sentido, é importante que os(as) participantes não tenham demasiada certeza das
suas certezas, principalmente os(as) professoras(as). Mesmo que haja momentos
explicativos, “o fundamental é que professor e alunos saibam que a postura
deles, do professor e dos alunos, é dialógica,
aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou ouve. O que
importa é que professores(as) e alunos(as) se assumam epistemologicamente curiosos” (FREIRE, 1997, p.
96).
- Dimensão
estético-afetiva: os seres humanos que se envolvem nas práticas
educativas precisam ser reconhecidos e assumidos na sua totalidade, vivenciando
o diálogo-problematizador, a sensibilidade para com os diferentes contextos, a
criatividade, a autonomia, a solidariedade, a responsabilidade, a participação,
a afetividade. Crianças, adolescentes e adultos vêm à escola para aprender a ser mais homens e mulheres; mas,
muita atenção:“é como uma totalidade – razão, sentimentos, emoções, desejos –
que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que se intenciona” (FREIRE,
2000, p. 76).
Trata-se de uma
educação voltada para a pessoa enquanto corporeidade consciente, com emoções,
sentimentos, olhares de espanto e admiração, desenvolvendo em todos e todas as
capacidades da curiosidade, da sensibilidade para consigo mesmos(as), com
os(as) outros(as) e com a realidade circundante, permitindo que as surpresas,
as emoções, as pulsações, a imaginação, o gosto pelo risco, o corpo, a
sexualidade e o sonho façam parte do seu modo de ser, viver e aprender como
crianças, adolescentes, jovens e adultos. Ou seja, “o humano se constitui no entrelaçamento
do emocional com o racional. [...] Mas o fundamento emocional do racional é uma
limitação? Não! Ao contrário, é sua condição de possibilidade” (MATURANA, 2001,
p. 18).
Meninos e meninas, jovens ou adultos(as), esperam
encontrar na escola mulheres- professoras e homens-professores na sua inteireza, capazes de vivenciar emoções,
permitir-se e assumir sentimentos, sonhos, amores e raivas; capazes de admirar-se
diante de um belo pôr-de-sol ou emocionar-se com uma bela música, e também indignar-se
diante da injustiça e brutalidade de quem “brinca de botar fogo em índio” ou de
quem, por causa da ganância e do lucro, agride e destrói o Planeta; capazes de
sorrir, acarinhar, chorar, abraçar quem chora e quem vibra; ainda capazes de
sentir um “nó na garganta” e de viver a solidariedade; capazes de dar e receber
afeto, sem deixar de ser “firme” quando necessário; capazes de brincar e ser
alegres, sem deixar de ser sérios; capazes de respeito, de amizade e de
competência, com todos(as) e em todos o espaço-tempos.
Poderíamos dizer que as crianças, os jovens e os
adultos sentem-se “mais gente”, e aprendem melhor e com mais alegria, quando
encontram educadores e educadoras amáveis
e sensíveis. As pessoas sensíveis
e amáveis são acolhedoras, sinceras e transparentes, incapazes de discriminar
ou desrespeitar, buscando conviver com o cuidado
para não magoar ou diminuir o(a) outro(a), embora saibam quando e como dizer
sim e dizer não. São, ainda, pessoas que sonham, e partilham seus sonhos com
os(as) outros, motivando-os(as) a também sonhar; não só sonham, mas
esperançosamente se lançam para fazer de seus sonhos projetos e realizações
transformadoras, contribuindo com a construção de um mundo e uma vida com mais bonitezas e alegrias para todos(as).
Tudo isso deve ser intencionalmente assumido, como
parte de uma práxis educativa séria e
rigorosa, como componentes pedagógicos fundamentais que perpassam todos os
processos de ensino-aprendizagem. Assim a escola vai se tornando um ambiente
onde todos(as) vão aprendendo a descobrir e reconhecer as bonitezas e possibilidades do
mundo e da sua “genteidade”, assumindo-se como seres de esperança, “gostando de ser gente”[3].
- Dimensão Pedagógica: O(a) educador(as) não é aquele que se coloca acima ou
diante de seus(suas) educandos(as) para “instruí-los”, mas quem com eles(as)
faz a “caminhada”; juntos vão descobrindo e (re)aprendendo o que é importante
para ser mais, cada um(a) “dizendo a
sua palavra” e “escutando a palavra” do(a)a outro(a). Os processos de ensino-aprendizagem vão se
dando numa reciprocidade de consciências, não
carecem de alguém que tudo sabe a ensinar para outro que nada sabe, mas alguém
que assuma a responsabilidade de conduzir o processo em condições favoráveis à
dinâmica dialógico-problematizadora do grupo, uma vez que "enquanto dirigente do processo, o professor libertador não está
fazendo alguma coisa aos estudantes, mas com os estudantes" (FREIRE,
in FREIRE; SHOR, 1996, p. 61). Trata-se
de resgatar o “pedagogo” da paidéia grega, sendo aquele(a) que conduz – caminhando
ao lado, dialogando, sendo amigo(a), problematizando, refletindo, desafiando – o(a) educando(a) para ir aprendendo os
“ofícios” e “conhecimentos” necessários para viver como homem ou como mulher.
O papel do(a)
educador(a) é fundamental enquanto que, pelo diálogo e pela problematização,
vai conduzindo um processo de desvelamento da ciência, da realidade e da
própria existência humana, sendo que, para isto, a professora e o professor
precisam ter clareza sobre o ponto de partida e de chegada da reflexão e da
análise. Cabe-lhes conduzir o processo de tal forma que as falas dos(as)
educandos(as) e as falas do(a) educador(a) – que, por vezes, precisam ser
expositivas sobre determinados conteúdos-conceituais – conduzam a uma visão
clara, fundamentada e crítica, mas de cuja construção todos e todas
participaram como sujeitos. Considerando a importância do papel e da necessária
rigorosidade e seriedade do(a) educador(a), Freire enfatiza:
faz parte das condições em que aprender criticamente é
possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou
continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem
a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas
condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais
sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do
educador, igualmente sujeito do processo (FREIRE, 1997, p. 29).
Esta nova
perspectiva pedagógica, com rigorosidade e sensibilidade, assenta-se numa “pedagogia radical da pergunta”. A
primeira aprendizagem, para uma prática educativa crítica e democrática, é
aprender a perguntar e aprender a provocar perguntas; saber quais perguntas são
fundamentais para sentir e apreender a realidade, e quais perguntas são
fundamentais na rigorosidade da busca da razão
de ser do conhecimento, seja ele popular ou científico. Somente quem se
pergunta e permite que a curiosidade dos(as) outros(as) o(a) provoque e desafie
pode ir apreendendo sempre, mesmo quando está ensinando. Apreender a escutar a
pergunta dos(as) educandos(as) e com eles(as) buscar a resposta pode levar a
professora ou o professor a rever as suas respostas já elaboradas, ou
simplesmente retiradas dos livros, além de desenvolver nele(a) a capacidade de
falar com os(as) educandos(as), e não para os(as) mesmos(as) ou sobre
os(as) mesmos(as); mais que um confronto, a pergunta coloca educandos(as) e
educadores(as) lado a lado para juntos buscarem novas respostas, exercitando
intersubjetivamente a curiosidade epistemológica.
O cotidiano escolar, como parte dos
processos de existenciação humana, é mais do que um conjunto de teorias,
conceitos ou até mesmo discursos críticos; somos homens e mulheres como
totalidades tramadas com sentimentos,
crenças, valores, sonhos, emoções, conflitos, idéias e projetos. Daí a
importância de um “ambiente” dialógico-reflexivo, permeado por uma razão-emoção
que combina o sentir/pensar/agir crítico com o sentir/pensar/agir criativo,
curioso, rigoroso e amoroso, com uma “pedagogia da pergunta”, em que
educandos(as) e educadores(as) vamos aprendendo também a tomar nas próprias
mãos nossas histórias e nossas vidas, a partir e com os conteúdos trabalhados. Por
isso tudo, o papel do educador e da educadora
...é testemunhar a seus alunos, constantemente, sua
competência, amorosidade, sua clareza política, a coerência entre o que diz e o
que faz, sua tolerância, isto é, sua capacidade de conviver com os diferentes
para lutar com os antagônicos. É estimular a dúvida, a crítica, a curiosidade,
a pergunta, o gosto do risco, a aventura de criar (FREIRE, 1995, p. 54).
A escola, então, vai se constituindo um
espaço-tempo de vivência da nossa “genteidade”, na totalidade das dimensões e
aspectos da inteireza dos nossos corpos conscientes; vamos descobrindo e
assumindo a nossa complexidade, tramada pelo entrelaçamento do individual com o
sócio-histórico-cultural, através de sonhos, angústias, idéias, necessidades,
crenças, desejos, afetividades, projetos, medos e esperanças. Nela e com ela,
homens e mulheres poderemos ir descobrindo-nos como totalidades complexas, partes
de uma totalidade ainda maior, “gostando de ser gente”, sabendo-nos
condicionados(as) e inconclusos(as) e, por isso mesmo, capazes de “ser mais” , com a ousadia de correr o
risco da aventura histórica como possibilidade de vislumbrar e construir
horizontes mais esperançosos.
Referências
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Mestre. Imagens e auto-imagens. 3ªed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2001.
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FREIRE, Paulo. Professora
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MATURANA, Humberto. Emoções
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NIDELCOFF,
Maria Tereza. Uma Escola para o Povo. 38ª ed. SP: Editora Brasiliense, 1996.
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