DIVERSIDADE CULTURAL E EMANCIPAÇÃO
Talvez para muitos seja
ultrapassado e jurássico falar em emancipação em tempos de pós-modernidade e na
sociedade do conhecimento e da comunicação, onde “todos podem ter acesso ao que
é produzido mundialmente”. Outros talvez considerem utópico falar em
emancipação dentro das relações da sociedade capitalista, agora no estágio da
especulação financeira (em que o trabalho vivo do ser humano vem sendo trocado
pelo trabalho morto da robotização). Não
obstante, é a partir desta realidade que ainda continuamos acreditando no ser
humano como capaz de (re)descobrir-se sócio-histórico-culturalmente, embora
condicionado, com capacidades de tomar nas mãos a sua história, a sua
constituição humana na interação e “troca” com os outros e com o mundo.
A
globalização coloca homens e mulheres sob diferentes domínios de uma verdadeira
“indústria cultural”, visando homogeneizar todos os povos. O sociólogo Octavio
Ianni, em sua obra Teorias da
Globalização, analisa a globalização capitalista não como um fenômeno
meramente econômico, mas também como um processo que envolve as configurações
sociais e o estado de espírito das pessoas, gerando diferentes dilemas e
horizontes nas pessoas e nas sociedades. A globalização, em nome da modernização, implicaria na difusão
e legitimação dos padrões e valores sócio-culturais predominantes na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos. Para o autor,“...cabe reconhecer que a modernização, nos termos que ocorre pelo
mundo afora, está predominantemente determinada pela racionalidade do
capitalismo, enquanto racionalidade pragmática, técnica, automática. Em lugar
de emancipar indivíduos e coletividades, em suas possibilidades de realização e
imaginação, produz e reproduz sucedâneos, os simulacros, virtualidades ou
espelhismos” (1996, p. 91).
Nas
relações dentro globalização a diversidade cultural dos povos tanto pode ser
enriquecida como também pode ser anulada. Para que o acesso e o contato com o
mundo e as “diferenças” nele existentes não transformem ninguém em mero
“repetidor” ou “consumidor” dos “bens culturais” de “povos mais desenvolvidos”,
é preciso assumir uma postura dialógico-reflexiva, buscando cada povo e/ou
indivíduo conhecer e valorizar a sua identidade cultural – e o que nela está
implicado – para também valorizar e reconhecer as diferenças
histórico-culturais do(a) “outro(a)”, sem necessariamente ter que sujeitar-se
aos seus ditames ou, então, simplesmente rejeitá-las.
1. Cultura: ir aprendendo a ser homens e mulheres
Em
meio a uma sociedade brasileira que historicamente foi submetida a uma
dependência cultural, forçada à repetição dos valores, costumes, língua,
religião e conhecimentos do colonizador, Paulo Freire, em meados do século XX,
propôs a sua “Pedagogia do Oprimido”. A cultura é elemento central do processo
de reflexão dialógica que leva à conscientização e, por conseguinte, à
emancipação daqueles e daquelas que estavam sendo “objetos” da cultura
opressora, seja nos campos econômico, político, religioso e intelectual. Num de
seus últimos escritos Freire retoma a importância da reflexão e da
conscientização para “gostar de ser homem e mulher” em meio a estruturas ainda
dominadoras e exploradoras:
Gosto de se gente porque, mesmo sabendo que as
condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas
em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o
cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos
não se eternizam.[...] Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal,
pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade
da conscientização. Insisto na sua atualização. Na verdade, enquanto
aprofundamento da “prise de conscience” do mundo, dos fatos, dos
acontecimentos, a conscientização é exigência humana.[..] Em lugar de estranha, a conscientização é natural ao
ser que, inacabado, se sabe inacabado. [...] Mais ainda, a inconclusão que se
reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado
num permanente processo social de busca. (1997, pp.60/61)
Sim, na pedagogia libertadora de Paulo Freire a cultura é um
elemento central para uma educação crítico-reflexiva e emancipadora. Desde as
suas primeiras experiências de alfabetização de adultos em Angicos, na década
de 50, até seus últimos escritos, sempre enfatizou a importância de cada ser
humano ir se descobrindo como alguém que vem
sendo porque faz cultura relacionando-se permanentemente com os(as)
outros(as) e com o mundo, acrescentando ao mundo natural criações e recriações
que se configuram como saberes e conhecimentos expressos pela linguagem e pelo
trabalho. Homens e mulheres vão se descobrindo e assumindo numa interação
geradora de cultura, com o mundo e com os outros seres humanos. Dialogando,
tendo curiosidade, refletindo, buscando apreender criticamente a causalidade
dos dados da realidade, dos fenômenos e das situações que captam e/ou
experienciam, vão desenvolvendo uma consciência crítica que começa por
devolver-lhes a auto-estima, a confiança em si mesmos(as) e a valorização
daquilo que fazem, pensam, sentem e estão sendo.
Desmistificando o conceito elitista e excludente de cultura, sua criticidade
tem como ponto de partida uma nova concepção:
...a cultura como acrescentamento que o
homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. Do
seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A
dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da
experiência humana. Como a incorporação, por isso crítica e criadora, e não
como uma justaposição de informes ou prescrições "doadas". [...] O
homem, afinal, no mundo e com o mundo. O seu papel de sujeito e
não de mero e permanente objeto.
A partir daí, o analfabeto começaria a
operação de mudança de suas atitudes anteriores. Descobrir-se-ia, criticamente,
como fazedor desse mundo da cultura. Descobriria que tanto ele como o letrado
têm ímpeto de criação e recriação. Descobriria que tanto é cultura o boneco de
barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra
de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico, ou de um
pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País, como também a
poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana.(FREIRE,
2000, p. 117)
É fundamental
partir sempre da escuta e da problematização do mundo do trabalho, das idéias,
dos mitos, das crenças, das convicções, das obras, dos produtos, das artes, das
ciências, das aspirações, enfim, do mundo da cultura e da história que homens e
mulheres conhecem pela vivência cotidiana, buscando com eles(as) descobrir que
tudo é resultado das relações dos membros da espécie humana entre si e com o
mundo, mas que esta realidade ao mesmo tempo condiciona aos seres humanos, seus
criadores.
Descobrindo-se
na condição de “não-sujeitos”, mas também reconhecendo a subjetividade do(a)
outro(a), dialogando, homens e mulheres, mesmo em situações estruturais de alienação
e dominação, podem ir encontrando luzes e brechas para engajarem-se num
sentir/pensar/agir de transformação desta realidade e da sua nova
auto-configuração enquanto sujeitos; começam a assumir a aventura e o risco
histórico de re-humanizar o mundo no qual eles(as) próprios(as) estão sendo discriminados
e/ou negados, para se reencontrarem e reconquistarem humanamente, não como
objetos, mas como sujeitos que tomam nas mãos os rumos da história e da própria
existência.
A práxis educativa – nos seus diferentes
lugares e modos – pode ser a provocadora e a colaboradora principal de um
projeto novo, confiando na capacidade crítico-reflexiva dos seres humanos,
desenvolvendo com eles as condições para transformarem a si mesmos e o sistema
de valores que sustentam estruturas socioeconômicas de dominação e exploração,
provocando uma "revolução cultural" que propicie o aparecimento de um
mundo novo, construído e habitado por homens e mulheres também novos(as). Uma
práxis educativa, então, contribuirá para a emancipação de homens e mulheres
que vão descobrindo em si e nos(as) outros(as) a possibilidade de, não obstante
todas as determinações estruturais, serem novamente os(as) sujeitos da
história; eles e elas têm o poder de se libertarem.
Assim, a
cultura vai se fazendo, tornando possível a humanização de homens e mulheres,
constituindo um sentir/pensar/agir que, reflexivamente, sabe-se
sentindo/pensando/agindo, sabe-se estar
sendo e precisando aprender a ser; eles e elas vão assumindo uma identidade
sócio-cultural, assumindo-a no relacionamento interpessoal e com o mundo. Não se pode falar em homens e
mulheres sem recorrer ao tema cultura; ele é inerente ao processo de
humanização das populações humanas; homens e mulheres são seres culturais por
essência, na medida que “tomam consciência” da processualidade sócio-histórica
em que vem sendo, produzindo um modo
de ser e viver pela interação com os outros e com o mundo. Daí que diferentes
populações humanas, mesmo tendo a mesma carga genética, serem diferentes umas das
outras; nada do que é humano é puramente natural. O que é humano é
sócio-histórico-culturalmente aprendido. Por ser pela cultura que,
historicamente, diferentes grupos se humanizaram, eles também foram assumindo
modos de sentir/pensar/agir, de ser e viver, com características específicas,
ainda que recebendo influências (“trocas”) de grupos vizinhos; assim, também os
conceitos de “cultura” e “identidade” não podem ser tomadas separadamente.
Ademais, toda cultura passa pela mediação da linguagem (e do trabalho).
2. “Aprender a dizer a palavra”
A linguagem é
esta aptidão que somente homens e mulheres conseguimos desenvolver, nomeando o
mundo para, também simbolicamente, mostrar o que já se conquistou, refletir
sobre o que foi feito e imaginar novas mudanças, novas opções; é a capacidade e
oportunidade que cada ser humano tem para se pronunciar no seu tempo presente,
refletindo, buscando a razão de ser
dos conhecimentos e das palavras com as quais as gerações antecessoras
historicamente pronunciaram o seu espaço-tempo e a si mesmas; é o meio pelo
qual os seres humanos vão dando sentido à própria existência. Pela linguagem a espécie humana vive na
história, pela história, como história e faz história, não ficando prisioneira
às fronteiras do presente, podendo interpretar e compreender o passado,
ressignificá-lo na atualidade e projetar um novo futuro.
Pela mediação
da linguagem os diferentes grupos da espécie humana foram assumindo um modo de
sentir/pensar/agir com características próprias, transformando também o mundo
natural ao seu entorno através do trabalho. Não obstante, paradoxalmente, na
mesma processualidade sócio-histórico-cultural em que foram se emancipando da
condição meramente animal, começaram as disputas entre os diferentes grupos;
uns passaram a dominar e explorar os outros, impondo-lhes as suas maneiras de
ser e viver, transformando-os em “objetos” da sua cultura, do seu
sentir/pensar/agir. Foram sendo negadas e/ou arrancadas as raízes identitárias
(a sua humanização originária), forçando certos grupos tomarem como referência
do seu sentir/pensar/agir os valores, idéias, crenças, costumes e língua do
grupo dominante; alienados e dominados, deixaram de ser sujeitos de si mesmos.
Por outro lado, grupos e povos, para protegerem-se da possibilidade de
dominação e de aculturação, foram criando estruturas e mecanismos de proteção e
disseminação das suas características identitárias, desenvolvendo-se uma
espécie de etnocentrismo.
O
etnocentrismo consiste numa postura em que “o
nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados
e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que
é existência. No plano intelectual ,
pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo,
como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade” (ROCHA, 2004, p. 7).
“Eu” e “minha cultura” somos o centro, o melhor, o superior; o “outro”, e o seu
jeito de conceber a vida e o mundo, são tomados como o anormal, o exótico, o
ridículo, o atrasado. O “outro” nunca equivale ao “eu”, e ele sempre é julgado
a partir dos valores e referenciais da minha cultura. Ou seja, “aqueles que são diferentes do grupo do eu –
os diversos ‘outros’ deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos,
acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas
de determinados momentos” (Ibidem, p.15).
Toda pessoa
e/ou sociedade tem a base de sua compreensão no seu processo
sócio-histórico-cultural. Eis porque é importante o reconhecimento da “palavra”
de todos os seres humanos como sujeitos cuja constituição vem se dando por meio
de interações, que por vezes podem ser “preconceituosas”, discriminadoras,
excludentes e/ou dominadoras. Entretanto, tomando consciência do instituído que
condiciona, mas não determina fatalisticamente, pode-se ir construindo tempos e
espaços instituintes, onde tudo se põe como projeto, como sonho de “inéditos
viáveis”, desafiando a cada uma e a cada um a “dizer a sua palavra” como ação consciente e engajamento na
construção e re-construção da história, do mundo, da própria existência humana.
Homens e mulheres precisam ser olhados(as) e escutados(as), reconhecidos(as) e
valorizados(as), em todas as suas dimensões, para que se consiga integrar e
assumir as suas diferentes construções sócio-histórico-culturais, na complexa
trama em que se fundem o intelectual e o emocional, o pensar e o fazer, o
teórico e o prático, o dever e o prazer, o aprender e a alegria, o individual e o social.
Assumindo o
seu mundo e a sua identidade cultural conscientemente, os seres humanos vão se
constituindo enquanto corpos conscientes;
humanizando o seu meio, humanizam-se. Por isso, a tarefa da educação é
capacitar as pessoas para participarem conscientemente do que existe, mas
também para se empenharem fortemente na busca e construção de alternativas que
criem condições favoráveis para que todos(as) possam se assumir como
sujeitos-fazedores da sua história e do mundo no qual intersubjetivamente vão
se gentificando. Neste processo, educar é conscientizar, no sentido de buscar a
emancipação e a plenitude da condição humana de cada homem e de cada mulher.
3. Conscientização: desvelamento e compromisso
Ainda
que existam estruturas que aprisionam, é possível criar processos que libertem.
Eles e elas podem tomar em suas mãos a sua existência, ainda que nela esteja
“introjetada” a cultura do opressor. Eis
porque, de dentro de um sistema articulado de dominação, externa ou interna, o
princípio da conscientização é um fator decisivo para um processo de
emancipação. Na conceituação profunda e
pluridimensional de FIORI (1991, p. 66), “...o
homem não pode libertar-se, se ele mesmo não protagoniza sua história, se não
toma sua existência em suas mãos. A isso conduz a dinâmica da conscientização.
[...] Só assim será possível repor os termos dos problemas de uma educação
autenticamente libertadora: força capaz de ajudar a desmontar o sistema de
dominação, e promessa de um homem novo, dominador do mundo e libertador do
homem”.
Conscientizando-se,
homens e mulheres se existenciam: tomam nas mãos a constituição do seu mundo e
a sua própria constituição humana, assumindo a sua emancipação, a sua condição
de sujeitos do seu sentir/pensar/agir individual e coletivo, da sua cultura.
O ser humano só se conscientiza na medida em que vai desvelando e decodificando
o “seu mundo” na sua complexa trama multidimensional, na medida em que nele se
encontra, em que nele se assume; homens e mulheres se presentificam a si
mesmos(as) presentificando e assumindo o seu mundo e os(as) outros(as),
manifestando o seu sentir/pensar/agir do mundo, com o mundo e sobre o mundo. Ou
seja, “a
consciência é ‘para si’, sendo ‘para o outro': simultaneamente, implicadamente,
dialeticamente.Uma consciência que fosse presença presente a si mesma, sem a
mediação de presente algum, não seria ‘para si’ mas o ‘si mesmo’ absoluto. Por
isso, o ‘para si’ da consciência é uma abertura que seria nada se o outro não
fosse, na relação em que ela, a consciência, se constitui” (Ibidem,
p. 67).
Na medida em
que o ser humano dá significados ao mundo e expressa o seu sentir/pensar/agir
nesse significar ativo, ele se reencontra cada vez mais, reencontrando, também,
as “verdades” sobre as quais o mundo vai sendo construído, bem como as
“verdades” com as quais ele próprio, nos diferentes grupos e circunstâncias
históricas, desenvolve seu processo de humanização. Então, a conscientização –
que é sempre inserção intencionada no mundo, junto com os(as) outros(as) – só
pode ser entendida como ação transformadora.
Homens e mulheres descobrem-se sendo
num mundo que é feito e significado pelo trabalho, pela linguagem, pelas
emoções, sentimentos, convicções, crenças, costumes, valores, reflexões,
decisões e ações de seres humanos, para que historicamente pudessem se
humanizar. Os saberes e as práticas passam a ser explicadas e compreendidas
dentro da multiplicidade de sentidos construídos historicamente pela dialética
mundo-educação-seres humanos. Eis porque em todos os espaço-tempos educativos é
fundamental “tematizar”, valorizar e problematizar dialogicamente o mundo da
vida, as diferentes culturas, as diferentes linguagens, os valores inculcados,
os saberes e conhecimentos com os quais tentamos compreender e explicar as
coisas e acontecimentos da vida e do mundo, como gerados historicamente.
De uma
maneira ou outra, eles e elas já estão
sendo gente, já aprenderam muitos saberes importantes em muitas dimensões
da natureza/cultura humana; sabem, sentem, sofrem, vibram, imaginam, criam,
falam, pensam, adivinham, sonham... vêm
sendo gente pela “experiência feito”.
Eis porque “é impossível conhecer com
desprezo à intuição, aos sentimentos, aos sonhos, aos desejos. É o meu corpo
inteiro que, socialmente, conhece. Não posso, em nome da exatidão e do rigor,
negar meu corpo, minhas emoções, meus sentimentos” (FREIRE, 1995, p. 109).
Pensando em
processos de emancipação, que sempre devem fundamentar-se na valorização e no
reconhecimento das construções e saberes dos sujeitos envolvidos, entendemos
que optar pela pedagogia do “diálogo problematizador” é o melhor caminho. O questionamento
e a pergunta, o “dizer a palavra”,
são mais do que simples indagações; são manifestações do corpo consciente de um homem ou de uma mulher que está em busca da
realização dos seus sonhos ou da resolução de suas preocupações, carregadas de
cultura, história, posição de classe, sentimentos, denúncias, esperanças,
valores, saberes. É preciso reconhecer que o povo trabalhador já conhece, já
tem um saber; e partir desta bagagem cultural para que suas crianças, seus
jovens e eles(as) próprios(as) possam conhecer mais e melhor, inclusive para
problematizar e refletir com eles(as) sobre o conhecimento (ou saber) que se
fixa na aparência e sensibilidade dos fatos, buscando alcançar sua razão de ser. Segundo FREIRE, no seu
diálogo problematizador com Moacir Gadotti e Sérgio Guimarães,“para que se faça isso ao nível do
conhecimento da realidade, ao nível da participação, não há outro caminho senão
o de partir precisamente do lugar em que a classe trabalhadora se acha. Partir
do ponto de vista da sua percepção do mundo da sua história, do seu próprio
papel na história, partir do que sabe para poder saber melhor, e não partir do
que sabemos ou pensamos que sabemos. Se o ponto de partida está em nós, os
chamados intelectuais, não há nenhum outro caminho senão o autoritarismo” (In
GADOTTI et al, 1995, p. 69).
4. Diálogo problematizador, reflexão e emancipação
Na escuta da
palavra do “povo”, da sua semântica, da sua sintaxe, está a chave da
compreensão do seu sentir/pensar/agir e a possibilidade de, pelo diálogo
problematizador, contribuir com processos emancipatórios quando as situações
são de discriminação, de opressão, de dominação e de “coisificação” de homens e
mulheres. Caso contrário, ainda que em nome de uma educação crítico-transformadora,
pode-se transformá-los(as) em objetos do “nosso” modo de sentir/pensar/agir,
sobretudo pela nossa linguagem, impondo-lhes a “nossa” visão da realidade, do
mundo, da vida, da cultura, etc.. Neste sentido, Freire alerta:“... é o caso de quem procura fazer cabeças,
desconsiderando, por exemplo, que a consciência crítica, junto com uma dimensão
de classe supõe uma dimensão individual, o que faz com que a consciência se
manifeste de forma heterogênea. É impossível, assim, que numa platéia de
trezentas pessoas, por exemplo, a consciência crítica se manifeste
homogeneamente. Os momentos da consciência são vividos também individualmente e
remetem à história do indivíduo, da sua idade, sexo, crença, etnia, ou seja,
elementos que não são apenas de classe” (Ibidem, 77/78).
Ademais, só é
emancipador problematizar suas visões e concepções da realidade se primeiro
houver a aceitação e valorização das mesmas tanto quanto se dá importância aos
saberes e conhecimentos técnico-científicos. É a tarefa do “desvelamento do
real”, que sempre requer, escuta, sensibilidade, diálogo, participação,
respeito, problematização, reflexão, autonomia, oportunidade para todos(as) “dizerem” seu sentir/pensar/agir sem a
presença de qualquer forma de coerção. Trata-se de assumir uma práxis educativa
que coloque sua preocupação fundamental na realidade e na vida de seres humanos
concretos, procurando “olhá-los” e “escutá-los” a partir do seu mundo
significante das “palavras” que
pronunciam. Prosseguindo o diálogo com Faundez, Freire aprofunda:“aí temos uma diferença enorme entre nós e
as classes populares que, de modo geral, descrevem o concreto. Se perguntarmos
a um favelado o que é uma favela, é quase certo que responda: na favela não
temos água. A sua descrição é a do concreto, não a do conceito. A linguagem das
classes populares é tão concreta quão concreta é a sua vida mesma”(FREIRE
& FAUNDEZ, 1998, p. 64).
Por sua vez,
a realidade sócio-histórica também é um “dando-se”.
Por isso, ela pode ser mudada, transformada, uma vez que a sua complexidade e
riqueza estão justamente no fato dela ao mesmo tempo mostrar-se cheia de
limites e grávida de possibilidades. A busca da sua compreensão, o seu
confronto com idéias e teorias, a sua problematização, a sua decodificação, vão
se constituindo numa tomada de consciência capaz de gerar novos sonhos, novas
idéias e novos projetos; mas com o sentido de “inéditos viáveis” porque partiram do concreto que aí está, podendo
transformar-se em ações, e não porque foram “soluções importadas de fora”. Para tanto, todos(as), mas principalmente
os(as) educadores(as) e os(as) pesquisadores(as), precisam tornar-se“capazes de ir aprendendo a juntar, na
análise do processo em que se acham, a sua competência científica e técnica,
forjada ao longo de sua experiência intelectual, à sensibilidade do concreto”
(Ibidem, p. 56). No “diálogo problematizador” tanto as perguntas como as
respostas devem sempre ter ligação com a vida, com o mundo, com as ações e as
práticas vivenciadas pelos(as) interlocutores(as), para não virarem um jogo
intelectualista; é de fundamental importância que o homem ou a mulher, “ao perguntar sobre um fato, tenha na
resposta uma explicação do fato e não a descrição pura das palavras ligadas ao
fato. É preciso que.. vá descobrindo a
relação dinâmica, forte, viva, entre palavra e ação, entre
palavra-ação-reflexão” (Ibidem, p. 49).
A “pedagogia
da pergunta” leva à radicalidade das palavras, das coisas, dos fatos, da vida e
da existência de homens e mulheres, buscando a razão de ser, a essência do ser-no-mundo na concretude sócio-histórico-cultural.
Mas também abre as portas para, a partir do desvelamento da realidade, sonhar
novas aventuras e novas possibilidades; faz transcender as fronteiras
espácio-temporais para vislumbrar um projeto de futuro com novos horizontes,
novas maneiras de ser-no-mundo; faz nascer a esperança e o compromisso com a
mudança, desafiando a todos(as) a construir a história de forma mais
humanizadora: “o sonho é sonho porque, realisticamente ancorado no
presente concreto, aponta o futuro, que só se constitui na e pela transformação
do presente” (Ibidem, p. 71). Somente quem tem o pé conscientemente na
realidade consegue dar um passo para fora da mesma; somente quem toma
consciência do espaço-tempo presente pode vislumbrar um futuro diferente,
aceitando o risco de ajudar a construir uma nova história à luz da utopia, do
sonho possível, para superar os limites que o sistema vigente impõe. Trata-se
de uma relação dialética entre a realidade – que nos condiciona – e a utopia, o
sonho de um mundo com relações diferentes. Para poder sonhar em ir a algum
lugar diferente é preciso primeiramente saber e aceitar a realidade onde se
está.
Então, nada
sobre a vida, os humanos, a sociedade, a cultura, a linguagem, a ciência, a
técnica, a atividade humana, a política, pode ser desconsiderado por uma práxis
educativa crítico-emancipadora. Daí a necessidade de escutar os(as)
educandos(as), dialogar com as crianças, os(as) jovens e/ou adultos para com
eles(as) “ler o seu mundo”, partindo do saber
da experiência-feito expresso na sua semântica, na sua sintaxe, na sua
expressão corporal e em tantas outras formas de linguagem, para a partir daí,
sempre com eles(as), começarmos a ler as palavras, os conceitos, as
significações que historicamente os seres humanos sistematizaram e foram
deixando de geração para geração.
Toda práxis
educativa se dá com sujeitos totais que vêm se fazendo como história, como corpos conscientes, como identidades de
crianças, adolescentes, jovens e adultos, evitando a “ruptura entre sensibilidade, emoções e atividade cognoscitiva. Já
disse que conheço com meu corpo inteiro: sentimentos, emoções, mente crítica” (FREIRE,
1993, 118). Eis porque educadores(as) e educandos(as) precisam descobrir-se e
assumir-se como seres humanos, porque o processo de relações e
aprendizagens “não é movido a teoria, nem a tematização,
nem a discurso crítico. É movido a valores, sentimentos, pensamentos,
concepções, culturas escolares e profissionais" (Ibidem, 147). Para
além da descoberta de explicações causais, teóricas ou ideológicas, é
imprescindível buscar a auto-descoberta em meio às diferentes culturas sociais
que vão guiando práticas, para que todos se tornem sujeitos, tanto da práxis
educativa como da práxis social. Assim,
pela educação, as crianças, os jovens e os adultos, que vêm sendo, irão aprendendo a se assumir como seres
sócio-histórico-culturais, descobrindo-se e conscientizando-se de que são
condicionados e até mesmo dominados por outras culturas e circunstâncias, mas
que podem libertar-se, tomar a sua genteidade nas próprias mãos, como sujeitos
de si mesmos(as) e do mundo em que vêm
sendo. Para tanto, muito mais que uma “pedagogia de respostas”, uma
“pedagogia da pergunta e do diálogo” pode ajudar na construção de relações
emancipatórias, onde todos possam “aprender
a dizer a palavra” e “ser mais”.
É a partir do seu mundo que os sujeitos cognoscentes dão ao enunciado um
determinado sentido, tanto na emissão como na recepção. As diferentes
percepções estão imbricadas por uma diversidade de ambientes significados e
significantes, decorrentes das vivências de homens e mulheres que vão se
humanizando pela convivência; é preciso assumir a dialeticidade e dialogicidade
Eu-Tu, capaz de gerar a fusão de
horizontes entre os mundos dos conhecimentos acadêmicos e os mundos dos(as)
educadores(as) e educandos(as) do momento presente, para que todos(as)
compreendam o sentido das aprendizagens que buscam construir, sempre no sentido
de nos orientarmos dentro do nosso mundo da vida e do nosso horizonte de
compreensão.Quando sentimos os limites da nossa compreensão, sentimo-nos
remetidos(as) a refletir sobre nosso modo de compreensão na sua
condicionalidade e limitação sócio-históricas. Somos chamados(as) a procurar
entender o "outro(a)" através do "seu mundo", da sua
maneira de conceber as coisas. Assim, em todos os encontros humanos, em todos
os conhecimentos, abrem-se novas visões e se descortinam novos horizontes, que
por vezes podem até mesmo chocar-se ou romper com o "nosso mundo" de
compreensão.
Quando se
quer compreender o(a) "outro(a)", a partir do ponto de vista da época
atual, com uma situação histórica e um
horizonte concreto de compreensão, deve-se escutá-lo(a) para compreender o que
vem dele(a), do seu tempo, da sua cultura, do seu saber (científico ou de
experiência-feito), dos seus questionamentos, de seu espírito. Ocorre, então,
um duplo movimento, no qual se fundem os dois horizontes de compreensão. Entretanto, para compreender o(a) outro(a)
não é necessário assumir seu ponto de vista, seu modo de pensar, suas
convicções e atitudes, mas, mesmo guardando distância, examinar, verificar e
conhecer a sua visão e os fundamentos que o levaram a pensar e falar o seu
conteúdo daquela forma. O que não pode ocorrer é tentar significar o sentir/pensar/agir
das outras pessoas a partir do nosso horizonte de compreensão, desrespeitando
os significados presentes no mundo sócio-histórico-cultural da constituição
existencial destes homens e mulheres; assim negar-se-ia a sua condição de
sujeitos.
Urge, pois, o
esforço em salvar um tipo de sentir/pensar/agir que não descole do mundo e da
práxis vivida pelos homens e pelas mulheres de diferentes raças, etnias e/ou
grupos sociais, configurando um modo próprio de sentir/pensar/agir, de
ser-no-mundo; em outras palavras, reconhecer e comprometer-se com a sua
identidade, constituída sócio-histórico-culturalmente. A primeira condição para tal é:
acreditar nas capacidades dos homens e das mulheres, criando as condições
necessárias para que possam “dizer a sua
palavra”, a partir do seu mundo da vida, da sua maneira de ser e viver.
Eles(as) próprios(as), na medida que também vão aprendendo a escutar e
respeitar os(as) seus(suas) colegas, dialogicamente vão confrontando,
comparando, problematizando as concepções de vida, os valores, os saberes e
conhecimentos que vão sendo apresentados; ao serem problematizados(as) por
outros(as) que pensam e sentem a realidade sob outra perspectiva, terão que
rever seus posicionamentos e/ou aprofundá-los mais, na medida que vão argumentando,
refletindo, organizando e criando idéias. Por isto Freire acredita que uma
outra educação é possível, e propõe uma práxis educativa assentada na "concepção problematizadora e
libertadora da educação", acreditando profundamente no poder
(re)criador dos seres humanos, reconhecendo-os como "corpos conscientes".
5. Encontros “Eu-Tu” e emancipação
Partindo do pressuposto
de que homens e mulheres estão sendo impedidos(as) de ser na sua plenitude por
causa das relações e estruturas sociais que os(as) coisificam obrigando-os(as)
à acomodação ao mundo da opressão, diz-nos claramente FREIRE (1998, p. 67), "a libertação autêntica, que é
humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma
palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos
homens sobre o mundo para transformá-lo". Dialogando, questionando,
refletindo, conscientizando, re-fazendo, investigando criticamente vão se
descobrindo como seres capazes de sentir/pensar/agir por si mesmos(as), na
medida que desvelam o mundo que os(as) fazia "ser menos". Ou seja, “a educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente
através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no
mundo com que e em que se acham. [...] Servindo à libertação, se funda na
criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a
realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora
da busca e da transformação criadora” (FREIRE, 1998, p. 72).
No diálogo, na solidariedade,
todos e todas podem ter as condições para ser
mais, dizendo a sua palavra enquanto denúncia de um mundo opressor e
desumanizador, mas também enquanto pronúncia transformadora desse mesmo mundo,
através da fala, do trabalho, da ação-reflexão-ação. Aprendendo a falar umas
com as outras, as pessoas aprendem também a reconhecer e incorporar as
diferentes visões de mundo presentes nas palavras de cada participante.
Dialogar é um processo em que todos(as) se permitem "pensar em voz
alta", sabendo que podem ser questionados(as) nas suas idéias e que devem
estar dispostos(as) a escutar as idéias dos(as) companheiros(as): "aprendemos a ouvir os outros quando
gastamos tempo para construir para nós mesmos o significado do que eles estão
tentando comunicar. E aprendemos a nos ouvir quando gastamos tempo refletindo a
respeito do significado de nossas próprias palavras" (SPLITTER &
SHARP, 1999, p. 67). Cada um(a) vai
falando na inteireza de seu corpo
consciente que vem sendo
sócio-histórico-culturalmente, mas também vai aprendendo a escutar a inteireza
do(a) outro(a) como corpo consciente que
em outro “mundo da vida” vem sendo
sócio-histórico-culturalmente. Começa-se a respeitar as individualidades e
características culturais de cada um(a); então, “a ida ao ‘outro’ se faz alternativa para o ‘eu’. O plano onde as
diferenças se encontram, onde o ‘eu’ e o ‘outro’ se podem olhar como iguais,
onde a comparação se traduz num enriquecimento de possibilidades existenciais,
é o plano mais amplo e profundo de um humanismo do qual o etnocentrismo se
ausenta. [...] Aí também, no encontro entre o ‘eu’ e o ‘outro’, emerge uma
compreensão do ser humano, a um só tempo, problematizadora e generosa” (ROCHA, 2004, P. 93).
O
reconhecimento da condição existêncial do meu “eu” está em olhar e escutar o
“outro” e o “diferente” dentro da sua constituição histórico-cultural, a partir
de um conjunto de emoções, decisões, consensos ou imposições, que grupos de
homens e mulheres, historicamente sistematizaram e configuraram como
princípios, valores, conteúdos conceituais, verdades, crenças, leis e gostos;
esta trama de elementos acaba condicionando as relações entre as pessoas dos
diferentes grupos sociais, através de uma herança sócio-histórico-cultural que
é legada de uma geração para as gerações seguintes. Cada “outro(a)”, seja uma
pessoa ou um grupo, assim como “eu”, tem a sua resposta existencial, a sua
“alteridade”. Ou seja, a emancipação enquanto humanização só possível no
encontro dialógico “Eu-Tu”.
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