segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Livro lançado pelo Grupo Dialogus



DIALOGUS: círculos dialógicos, humanização e auto(trans)formação de professores.








Livro disponível para venda.
Valor: 25,00
Contato: celsoufsm@gmail.com  ou joze.toniolo@iffarroupilha.edu.br




terça-feira, 3 de novembro de 2015

A AVALIAÇÃO COMO CONSCIENTIZAÇÃO: vivenciando um sentir/pensar/agir amoroso, crítico e dialógico-reflexivo

A AVALIAÇÃO COMO CONSCIENTIZAÇÃO:
vivenciando um sentir/pensar/agir amoroso, crítico e dialógico-reflexivo*

Celso Ilgo Henz[1]

Já faz algumas décadas que estamos debatendo e refletindo sobre uma das temáticas centrais nos processos de ensino-aprendizagem: a avaliação. Estas salutares problematizações têm gerado muitos escritos e diferentes enfoques sobre o assunto, bem como projetos que já estão mostrando que é possível fazer o diferente no que se refere à educação escolar como um todo e, consequentemente, ao sentido e prática do ato de avaliar dentro da caminhada didático-pedagógica. Acontece que muitas vezes a questão tem sido debatida de forma solta, isolada, razão pela qual não se tem chegado à essência da problemática, ou seja: antes de nos posicionarmos sobre a avaliação e sua função nos processos de ensino-aprendizagem, torna-se primordial a busca de uma maior clareza sobre quais “ensinos” e “aprendizagens” cabe à escola desenvolver; mais ainda: para que se “ensina” e se “aprende” na escola? Assim, por não se ter muito claro qual é o papel sócio-político-pedagógico dos processos de ensino-aprendizagem da e na escola, fica-se “tateando” também sobre a função e a prática da avaliação.
Tomemos como ponto de partida o cotidiano de nossas vidas. Tudo o que somos e fazemos, nossas formas de sentir/pensar/agir são resultantes de atos avaliativos que nós, ou os outros, realizamos a partir de princípios, valores, crenças, interesses, objetivos, motivações... Não vivemos por viver, mas sentimos/pensamos/agimos em função de metas, valores, “verdades” e pessoas; quanto maior a clareza sobre o que queremos e como queremos alcançar a concretização dos nossos objetivos, mais fácil se torna encontrarmos o sentido/signficado das coisas que experienciamos, tendo condições de analisá-las como sendo favoráveis ou não nas buscas e construções em que nos engajamos, sem medo de reconhecer que por vezes os caminhos e as formas precisam ser revistos e replanejados. Constantemente sentimos a necessidade de, dentro do processo específico de cada aspecto do nosso sentir/pensar/agir, emitirmos juízos de valor sobre os mesmos, para diagnosticar, problematizar, rever, decidir, agir, fazer algo desta ou daquela forma; vamos compreendendo “onde estamos” e “como estamos” à luz do que queremos alcançar e da forma como nos propusemos realizá-lo.


- Constituindo-nos Mulheres e Homens... também na escola e pela avaliação.
Na processualidade sócio-histórico-cultural em que vamos constituindo-nos enquanto homens e mulheres, a educação é a mediação fundamental. Só aprendemos a ser humanos, a ser gente, pela educação. Isto faz com que os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos no ambiente escolar tenham que ser assumidos dentro desta perspectiva maior: ensinamos-aprendemos a ser homens e mulheres, a ser gente; os conteúdos, as metodologias e tudo quanto se sente, pensa e faz na educação escolar tem a finalidade de estar a serviço da aprendizagem do humano. Ademais, eles não podem ser tomados e avaliados isoladamente, de forma fragmentada, mas assumidos da sua interrelação com os demais espaços-tempos e circunstâncias em que homens e mulheres vão aprendendo, vão se educando humanamente. O gênero humano não nasce pronto, com o seu “modus vivendi” já estabelecido; a natureza humana é aberta, programada unicamente para aprender, num vir-a-ser que vai sendo construído pela interação de uns com os outros e com mundo.
Nada do que é humano é natural; tudo o que é humano precisa ser aprendido, precisa ser constituído, precisa ser “ensinado-aprendido” coletivamente com uma intencionalidade clara e consciente para todos. Vamos constituindo-nos em homens e mulheres intersubjetivamente, partilhando saberes, sentimentos, sonhos, projetos, conhecimentos e ações pela reciprocidade reflexiva e comunicativa, buscando compreender e assumir a razão de ser de cada coisa, de cada ser, da nossa existência enquanto sentir/pensar/agir consciente e responsável. Ou seja:
                              
                                               No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas   
para mudar. [...] Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar.  De estudar  descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e  distante mundo, alheado de nós e nós dele. (FREIRE, 2006, p. 77)

Talvez tenhamos que começar a refletir um pouco mais sobre estes fundamentos primeiros e mais amplos da educação escolar, para a partir deles repensarmos o papel da avaliação; problematizarmos sobre “por que?” e “para que?” educamos na escola, para a partir daí significar o que nela fazemos, e então “avaliar” o que é importante ou não avaliar na caminhada que educandos e educadores fazemos enquanto coletividade educativa que assume determinados processos de ensino-aprendizagem sabendo a serviço de que e de quem os estamos construindo e/ou ensinando-aprendendo. Na medida em que estas questões forem se clareando, a finalidade da avaliação, os componentes a serem avaliados, as formas de avaliação, os sujeitos da avaliação e o que deve ser feito com os resultados da avaliação passam a ser questões conseqüentes que podem ser resolvidas com maior objetividade e sentido, pois já se sabe para que avaliar, o que avaliar e como agir com os resultados da avaliação.
 Assim, talvez, comecemos a entender que a avaliação da aprendizagem dos conteúdos é apenas um dos aspectos importantes; há muitas outras aprendizagens que também precisam ser avaliadas. Também vai se aprendendo que a aprendizagem é o fim, e que se ela não aconteceu satisfatoriamente conforme a proposta e os objetivos construídos por e para todos – ou pelo menos muito bem esclarecidos –, torna-se necessária uma avaliação profunda também dos processos de ensino, diagnosticando as questões que contribuíram e também aquelas que precisam ser repensadas e refeitas, tanto pelos educandos quanto pelos educadores. Já em 1975, no livro Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos, Paulo Freire insistia:

...Avaliação e não inspeção. [..] Entendida assim, a avaliação não é o ato pelo qual A avalia B. É o ato por meio do qual A e B avaliam juntos uma prática, seu desenvolvimento, os obstáculos ou os erros e equívocos porventura cometidos. Daí seu caráter dialógico.
“Tomando distância” da ação realizada ou realizando-se, os avaliadores a examinam. Desta forma, muita coisa que antes (durante o tempo da ação) não era percebida, agora aparece de forma destacada diante dos avaliadores.
Neste sentido, em lugar de ser um instrumento de fiscalização, a avaliação é a problematização da própria ação. (FREIRE, 2001, 9ª ed., p. 29)

            Quando educando e educadores são os sujeitos da avaliação, ela vai se tornando um processo de problematização dialógica, de autonomia, de co-responsabilidade e de comprometimento com as (re)construções dos diferentes componentes do ensino-aprendizagem a serviço de homens e mulheres que vão se emancipando, aprendendo uns com os outros a ser mais. Trata-se de uma avaliação dialógica, participativa, emancipatória, conscientizadora e cidadã, onde ninguém se sente objeto da avaliação de ninguém, mas todos vão se assumindo como sujeitos-aprendizes, uns mais jovens e iniciantes e outros como “aprendizes há mais tempo”; mas todos como aprendizes uns com os outros. Em vez de ser um ato unilateral, a avaliação vai se constituindo em um processo de aprendizagem e de construção participativa, dialógica, intersubjetiva, a partir da realidade de cada sujeito envolvido, encontrando e tecendo flechas apontadoras de novos caminhos, novas aprendizagens, novas formas de ensinar, novas formas de aprender, novos jeitos de se relacionar e interagir, novas maneiras de sentir/pensar/agir como homens e mulheres.
Isto tudo, para Freire, exige uma constante reflexão crítica e ética sobre a nossa prática docente, sobre o nosso que-fazer com os educandos. Daí que o ideal seria criar formas de os educandos participarem efetivamente da avaliação, uma vez que o trabalho do professor não se dá consigo mesmo, mas com os educandos; “nesta avaliação crítica da prática vai revelando a necessidade de uma série de virtudes ou qualidades sem as quais não é possível nem ela, a avaliação, nem tampouco o respeito do educando” (FREIRE, 2006, p. 64).  
            Então, em lugar de servir como “camisa de força” nas mãos dos professores, para constatar resultados (que muitas vezes nem os próprios professores sabem para que servem) e classificar (ou excluir?) os alunos em “bons” e “ruins” (aprovados e reprovados) a partir dos juízos e valores assentados nas concepções, posturas e interesses exclusivamente dos professores – ou de grupos de elite que pensam políticas e estratégias de controle e regulação para garantir uma “estratificação social” pela educação –, fazendo com que os alunos vejam estes momentos como castigo, como instrumento usado para punir ou para garantir que a “disciplina” seja garantida em aula, o ato avaliativo torna-se processo dialético e dialógico-reflexivo, passando a fazer parte de todos os momentos e aspectos da caminhada educativa empreendida na escola à luz de um projeto também construído por todos.

- Avaliação como conscientização e emancipação
Não ensinamos-aprendemos para a avaliação, mas avaliamos para melhor ensinar-aprender e para melhor viver; a avaliação não é um fim, e sim um auxiliar dos processos de ensino-aprendizagem e da vida; melhor ainda, é parte integrante da educação e da vida como mais um momento de aprendizagem, reflexão crítica, autonomia, responsabilidade e comprometimento de cada criança, jovem e adulto enquanto sujeito da sua própria história. Essa processualidade dialética e dialógica vai se configurando num movimento de conscientização individual e coletiva enquanto sentir/pensar/agir:
           
A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se “dês-vela” a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, rente ao nos encontramos para analisá-lo. Por esta razão, a conscientização não consiste em “estar frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.
Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo.[...]
A conscientização, que se apresenta como um processo num determinado momento, deve continuar sendo processo no momento seguinte, durante o qual a realidade transformada mostra um novo perfil. (FREIRE, 1980, p. 26)

 Neste movimento contínuo de adentramento e afastamento individual e coletivo, aos poucos vai desaparecendo a necessidade de determinar e especificar momentos e instrumentos específicos de avaliação;  a avaliação torna-se parte integrante das construções e reconstruções que vão sendo realizadas, fazendo com que todos exerçam a sua capacidade de refletir e dizer a palavra, e serem escutados também a partir das suas vivências, concepções e juízos de valores. A avaliação, então, é permanente, gradativa, mediadora, processual, conscientizadora, emancipatória e cidadã; todos são os sujeitos da avaliação porque todos são os sujeitos dos processos de ensino-aprendizagem desde o momento do planejamento, a definição dos “conteúdos”, os enfoques a serem dados aos diferentes saberes e conhecimentos, formas de trabalhar e organizar a concretização do projeto a serviço do qual a educação escolar se coloca.
Ana Maria Saul (1999), ao falar de avaliação emancipatória, conduz-nos na esteira da mesma concepção quando aponta três momentos e/ou etapas da avaliação, ressaltando que estes não são estanques, mas articulados dinamicamente entre si. Primeiro momento: expressão e descrição da realidade, onde se dá a verbalização e problematização do que está acontecendo; segundo momento: crítica do material expresso, procurando fazer uma reflexão sobre a prática e as responsabilidades de cada participante do processo; terceiro momento: criação coletiva, assumindo de forma pessoal e participativa as ações e alterações necessárias para reorganizar e reorientar o processo educativo. Segundo a autora, “a avaliação emancipatória caracteriza-se como um processo de descrição, análise e crítica de uma dada realidade, visando transformá-la. [...] O compromisso principal desta avaliação é o de fazer com que as pessoas direta ou indiretamente envolvidas em uma ação educacional escrevam a sua “própria história” e gerem as suas próprias alternativas de ação” (SAUL, 1999, p. 61).
Ensinar e aprender, assim como participar de tempos-espaços avaliativos, deixam de ser vistos como algo pesado, enfadonho e assustador, ou como uma relação de poder de uns sobre os outros, para pouco a pouco irem se constituindo e sendo assumidos como oportunidade de aprendizagens, reconstruções, problematizações, diálogos, reflexões e decisões que vão sendo construídas coletivamente, ao mesmo tempo que são fundamentais na constituição da identidade e individualidade de cada sujeito homem  e mulher.
Para Luckesi, a avaliação do processo de ensino-aprendizagem tem o papel de diagnosticar e reorientar as ações de todos os envolvidos: educandos e educadores, possibilitando que dialogicamente eles reflitam, repensem e reorganizem suas atividades para garantir que as metas estabelecidas (que em alguns casos também podem ser revistas) sejam alcançadas. Ademais, mesmo tendo clareza do objetivos, nos processos avaliativos é preciso que todos estejam atentos a outros aspectos que vão aparecendo e podem contribuir para que a realidade possa melhor ser descrita, refletida e modificada. Nas palavras do autor, “de fato, a avaliação da aprendizagem deveria servir de suporte para a qualificação daquilo que acontece com o educando[...] A avaliação não deveria ser fonte de decisão sobre o castigo, mas de decisão sobre os caminhos do crescimento sadio e feliz. (LUCKESI, 1998, p. 58).



- “Ser Mais” pela avaliação dialógica e amorosa
Toda atividade didático-pedagógica tem sua centralidade no educando, visando que ele consiga construir com o educador as diferentes aprendizagens da e na complexa tarefa de ir constituindo-se enquanto ser humano, enquanto cidadão. Para tanto, muitas dimensões e aspectos precisam ser contemplados quando avaliamos processos que estão a serviço de homens e mulheres que buscam na educação escolar uma oportunidade para ser mais; é a totalidade do sentir/pensar/agir como humano que vai se envolvendo nos processos de ensino-aprendizagem, ainda que a especificidade da educação escolar seja trabalhar com e a partir dos conhecimentos sistematizados pelas diferentes ciências. Entretanto, não se pode ficar numa atitude reducionista que contempla apenas a perspectiva cognitivo-racional, ou conteudista. Nas palavras de Luckesi,  “o  desenvolvimento do educando significa a formação de suas convicções afetivas, sociais, políticas; significa o desenvolvimento de suas capacidades cognoscitivas e habilidades psicomotoras; enfim, sua capacidade e seu modo de viver” (LUCKESI, 1998, p.126). 
Na escola estudamos não apenas para tirar boas notas ou para ser aprovado para a série seguinte. Na escola vivemos e ensinamos-aprendemos para melhor viver e ser feliz, aprendendo a encontrar a compreensão, a razão de ser, das coisas, dos fatos, do mundo, da natureza, da história, da sociedade, dos seres humanos e da nossa humana existência.

Nos processos de ensino-aprendizagem a avaliação não pode reduzir-se aos resultados alcançados, e sim também levar em consideração o como eles foram sendo (re)construídos, o que também é válido para o que denominamos de “conhecimento científico” das diferentes áreas. Aliás, da escola levamos muito mais as aprendizagens construídas pelas vivências dos processos em que nos envolvemos do que as informações, definições, conceitos, regras, fórmulas... 
Educadores e educandos estamos na escola para, sobretudo, trabalhar com o conhecimento científico, uma vez que esta é a especificidade a partir da qual na escola se procura contribuir com a humanização de homens e mulheres. No entanto, as regras, informações, conceitos ou outras sistematizações são conhecimento com cientificidade porque resultantes de uma busca organizada intencionalmente para responder, através de recursos e procedimentos lógicos e metodológicos, a preocupações, necessidades ou anseios que emergiram da realidade que determinados povos, ou filósofos e/ou cientistas, viviam; assim, as sistematizações “acumuladas” no âmbito das ciências, constituem-se em conhecimento para homens e mulheres de hoje na medida em que forem interrelacionados com a realidade de suas vidas, precisando serem avaliados a partir desta premissa maior. Nesta perspectiva, muitas vezes a maneira como trabalhamos com os diferentes conhecimentos científicos passa a ser mais significativo que as informações e conceitos neles contidos. Não obstante, facilmente se esquece que a gênese do conhecimento tem a ver com o mundo e com a vida, com sua relação com a realidade que historicamente tem desafiado a homens e mulheres nos diferentes tempos-espaços; assim,
Muitas de nossas práticas escolares – a maioria delas – por não levar a sério esta compreensão do fenômeno do conhecimento, escamoteiam-no. Substituem, falsamente, os desafios da realidade por desafios (armadilhas) articulados em “tarefas” e testes ditos “difíceis”. As dificuldades naturais, desafiadoras da imaginação criativa, são substituídas por dificuldades falsas e abstratas, impostas por um modelo autoritário do sistema educacional. O que importa, na escola, na maioria das vezes, não é conhecer o mundo e a realidade, mas “saber responder”, à imagem e semelhança do mestre, as questões que ele coloca. Torna-se, assim, mais importante o autoritarismo do mestre que a verdadeira autoridade da realidade. (LUCKESI et al, 1984, pp. 49/50).

Entretanto, uma nova concepção de escola, conhecimento científico e, conseqüentemente, de avaliação, é possível. Tomemos como exemplo o que Corbisier (apud Luckesi et al, 1984, p. 66) coloca sobre a compreensão filosófica enquanto conhecimento sistematizado: “a filosofia, portanto, não é alheia ou estranha à vida humana, porque é a própria vida humana procurando tomar consciência de si mesma, de sua origem, de sua essência e significação”.  Ou seja, o conhecimento filosófico está aí para ajudar-nos a compreender a nós mesmos e a realidade do mundo que nos rodeia, orientando-no nas nossas escolhas e rumos enquanto homens e mulheres capazes de sentir/pensar/agir autônoma e responsavelmente. No que se refere ao conhecimento científico, Luckesi et al (1984, p. 71) ajuda a esclarecer:
...o conhecimento científico pretende esclarecer as ocorrências factuais do universo, produzindo um entendimento de parcelas do “mundo”, descrevendo-as e criando as conexões lógicas e compreensíveis entre os seus componentes. A partir da identificação descritiva dos dados, estabelece-se um entendimento da realidade, pela verificação de como cada coisa, cada fenômeno se nos dá, possibilitando sua inteligibilidade a partir de seus contornos e elementos constitutivos.

Na escola não ensinamos-aprendemos apenas para conhecer o que os outros pensaram e disseram sobre o mundo, a vida, a realidade, os fatos... Servimo-nos do sentir/pensar/agir sistematizado por outras pessoas para a partir e com estes “conhecimentos” buscar compreender diferentes aspectos e realidades do nosso mundo e da nossa vida, tomando-os como instrumentos que nos ajudem a sobreviver e viver melhor. Assim assumidos, os conhecimentos com os quais trabalhamos nas diferentes áreas científicas contempladas pelos componentes das matrizes curriculares de nossas escolas, vão se constituindo em elementos de libertação; ou melhor: “não há, pois, conhecimento que se faça fora da prática do sujeito com o mundo que o cerca, e ao qual é necessário compreender, pela criação de significação e sentidos” (Ibidem, p. 53).

- “Certo” e “Errado”? Até quando?
Diante da perspectiva acima, como fica a questão das notas, dos conceitos, do “certo” e do “errado”?  Comecemos pelas notas e conceitos: tanto as notas quanto os conceitos (que na maioria das escolas são identificados por percentuais quantitativos), eles são indicativos insuficientes nos processos avaliativos, uma vez que se restringem a quantificar resultados (quase sempre apenas conteudistas) sem expressar o que não foi alcançado e, muito menos, analisar o porquê de não terem sido atingidos os objetivos propostos e como agir para reconstruir o que não aconteceu conforme o planejado. Mas o problema maior ainda pode estar na questão do “certo” e do “errado”; aliás, é preciso refletir sobre a possibilidade de as certezas (sobretudo dos professores) serem mais perigosas do que as incertezas, pois podem conduzir a autoritarismos e criar obstáculos ao diálogo-problematizador e outros procedimentos interativos e formativos.
Na medida em que vamos aprofundando a concepção de conhecimento como “entendimento do mundo”, e não como enfeite e ilustração intelectual ou congnitiva, todas as tentativas de resposta passam a ter seu valor, pois são a manifestação da compreensão possível alcançada até então, ainda que de forma ingênua, acrítica, empírica, ou sem uma fundamentação ou argumentação que consiga se sustentar com um embasamento lógico-metodológico. Trata-se de repostas que estão sendo construídas a partir de determinados questionamentos que brotam do mundo da vida ou que são formulados por pessoas que já são “aprendizes há mais tempo” e tem algumas respostas mais elaboradas e abrangentes, mas não são “os que sabem tudo” e vão ensinar aos “que não sabem”; não são respostas “certas” ou “erradas”, umas melhores e mais importantes que as outras, mas diferentes e que precisam ser problematizadas de uma forma cooperativa e dialógica, procurando mostrar que sócio-historicamente já foram alcançadas outras respostas por pessoas que se dedicaram a investigar mais sistematicamente a busca de entendimento da problemática em questão. Para Hoffmann (1993, p. 148),
...a avaliação, enquanto relação dialógica, vai conceber o conhecimento como apropriação do saber pelo aluno e pelo professor, com ação-reflexão-ação que se passa na sala de aula em direção a um saber aprimorado, enriquecido, carregado de significados, de compreensão. Dessa forma a avaliação passa a exigir do professor uma relação epistemológica com o aluno. Uma conexão entendida como uma reflexão aprofundada sobre as formas como se dá a compreensão do educando sobre o objeto do conhecimento.

  Na práxis didático-pedagógica da sala de aula, o professor pode dialogar com os seus alunos, olhando-os na sua singularidade sócio-histórico-cultural, analisando as respostas dos mesmos sem a necessidade de dizer que a resposta deles é errada; reconhece-a como diferente e mostra – muitas vezes através de comentários escritos sobre e a partir das respostas que vão sendo dadas nos diferentes instrumentos de avaliação – quais são as respostas que a ciência com a qual estão trabalhando está reconhecendo como válida com base em determinados princípios e/ou critérios, ainda que também passível de questionamentos.
Então, cada participante, especialmente o educando, passará a ser olhado e admirado na sua singularidade, sentindo-se respeitado na sua maneira de ser e ver  mundo e a vida, respeitado na sua história.  Assim, pouco a pouco a cultura do autoritarismo, e suas mais variadas formas de manisfestação e discriminação, vão sendo superadas; em seu lugar, educandos e educadores vão aprendendo um diálogo reflexivo também cognitivo-científico, mas sempre a serviço da busca de cada um e de todos poderem ser mais homens e mulheres, reconhecendo que a condição de ser de cada um passa pelo reconhecimento da condição de ser do outro, passa pela valorização e respeito à alteridade. Ou seja: “o diálogo, a compreensão do outro, a solidariedade na produção do saber. O diferente do outro representando o desafio à convivência social, à confrontação de hipóteses, à consistência de argumentação para a produção do saber a transformação da sociedade” (HOFFMANN, 1998, 27).     
Educar e avaliar são, pois, construções intersubjetivas, cooperativas, colaborativas, dialógico-problematizadoras, conscientizadoras e transformadoras, sempre na perspectiva maior de que a escola é lugar de gente que quer aprender a ser mais gente, podendo contar com a contribuição das metodologias e dos conhecimentos das diferentes ciências como explicações e compreensões até então alcançadas sobre “parcelas” do mundo e da vida. Sentir/pensar/agir para mudar a avaliação implica sentir/pensar/agir para mudar a práxis educativa, a maneira de enfocar os conteúdos, os responsáveis pela escolha dos aspectos a serem ensinados-aprendidos e avaliados, a forma de relacionamento entre professores alunos; significa sentir/pensar/agir para mudar o jeito de fazer, ser e viver como coletividade que ensina-aprende na escola, no mundo da vida.
Para finalizar, recorremos novamente Às palavras de Freire:
Os sistemas de avaliação pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais como discursos verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passa por democráticos. A questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do que-fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com. (FREIRE, 2006, p. 116)

Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 34ª ed. SP: Paz e Terra, 2006.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. 9ª ed. SP: Paz e Terra, 2001.
_______. Conscientização. Teoria e prática da libertação. 3ª ed. SP: Editora Moraes, 1980.
HOFFMANN, Jussara. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Educação & Realidade, 1993.
______Pontos e Contrapontos – do pensar ao agir em avaliação. 2ª ed. Porto Alegre: Mediação, 1998.
     LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e profissões. 8ª ed. – São Paulo: Cortez,  
     1998.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer Universidade: uma proposta metodológica. S: Cortez, 1984.





[1] Professor do ADE/CE-UFSM. Professor do PPGE/CE- UFSM. Doutor em educação.
   Email: celsoufsm@gmail.com
*Trabalho apresentado e publicado nos Anais (ISSN 2176-3569) do XIII Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire.
   UNIJUÍ – Campus Santa Rosa, 26 a 28 de maio de 2011.

Dialogando sobre cinco dimensões para (re)humanizar a educação

Dialogando sobre
cinco dimensões para (re)humanizar a educação[1]
Celso Ilgo Henz[2]

A espécie humana precisa aprender a se humanizar, o que se dá a partir da realidade do mundo que experimenta, na qual e com a qual homens e mulheres se constituem em reciprocidades reflexivas e comunicativas. O gênero humano é o único dentre as espécies vivas que não tem seu modus vivendi estabelecido ao nascer; tudo o que é humano precisa ser aprendido, precisa ser constituído socioculturalmente.  Mais: é pela educação que gente humaniza gente. Se a humanização fora do convívio social é inviável, também é pertinente reconhecer que nenhum relacionamento, nenhuma organização social e política, nenhuma forma de sentir/pensar/agir dispensa uma aprendizagem, uma educação para e pela convivência dos seres humanos uns com os outros e com o mundo circundante. Ela é o próprio processo pelo qual os seres humanos vão se constituindo a partir e por meio da interação com o mundo circunjacente e com os demais membros da sua coletividade.
Então, mesmo que nas escolas e na sociedade ainda não tenham ocorrido as mudanças que, muitas vezes, sonhamos, “existe algo que pode mudar...: é o modo de agir dos professores, sua maneira de relacionar-se com os pais e as crianças, os objetivos do trabalho, a maneira de enforcar os conteúdos” (NIDELCOFF, 1996, p. 19). Ainda podemos fazer a diferença, contribuindo para que a riqueza e o encantamento da existenciação humana brotem e se mantenham nos corpos conscientes de educandos(as) e educadores(as).
Por viverem num mundo multidimensional e complexo, com uma vida marcada pela simultaneidade entre o particular e o plural, homens e mulheres começam a sentir a necessidade de desenvolver uma razão-emoção capaz de dar unidade às diferentes relações, lógicas e perspectivas da vida e do mundo. Muitas dimensões e aspectos da humanização escapam aos domínios da ciência e da técnica, desafiando-os(as) a descobrirem outros caminhos para desvendarem e significarem a si mesmos(as) e à realidade circundante, seja ela natural, cultural, afetivo-emocional, social, econômica, política, científica ou poética. Não basta uma razão cognitivo-técnico-instrumental, porque a vida é mais e maior, precisando de outras referências (éticas e estéticas) para nos ajudar a descobrir as pessoas e as coisas na sua complexidade e dentro de uma totalidade maior. Trata-se de resgatar a poesia, o encantamento, a imaginação, a intuição, o sonho, a reflexão, enfim, a razão-emoção como um todo, mergulhando na intimidade das coisas, dos fatos, dos seres humanos, da vida, para ir além da mera constatação e descrição, fazendo emergir um sentir/pensar/agir como manifestação da razão de ser de cada coisa, de cada ser, da existência humana. Enquanto as ciências, em nome da “objetividade”, própria do cientificismo positivista, deixam passar os “detalhes”, a poesia continua falando dos homens e das mulheres, da vida, do amor, da beleza, da morte, da esperança, do inacabado, da presença dos(as) outros(as) em nossos sentimentos, sonhos, idéias, formas de ser e viver; vai declamando a intersubjetividade que constitui a subjetividade, num mundo que também vai se configurando interativamente, convidando-nos a descobrir novos sentidos, novas relações, novos horizontes. Segundo Edgar Morin (2001, pp. 38/39),
Unidades complexas, como o ser humano ou a sociedade, são multidimensionais: dessa forma, o ser humano é ao mesmo tempo biológico, psíquico, social, afetivo e racional. A sociedade comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa... O conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter multidimensional e nele inserir estes dados: não apenas não se poderia isolar uma parte do todo, mas as partes umas das outras. [...] Em conseqüência, a educação deve promover a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global.

Na perspectiva de uma ética universal do ser humano, necessária para uma convivência e uma educação humana e humanizadora, propomos que nós, educadores e educadoras, busquemos organizar e desenvolver, com os(as) educandos(as), práxis educativas que entrelacem, no mínimo, cinco dimensões: a ético-política, a técnico-científica, a epistemológica, a estético-afetiva e a pedagógica.  Assim, estaremos trabalhando e educando, inspirando-nos na perspectiva freireana, a serviço da aprendizagem de corpos conscientes em inconcluso e permanente processo de humanização, numa história que também não está dada previamente e nem acabada, mas que passa a ser compreendida como possibilidade, cujas situações-limites e obstáculos se transformam em desafios para a construção coletiva de inéditos-viáveis para uma “genteidade” e uma sociedade em que todos e todas tenham condições de ser mais e gostar de ser gente.


- Dimensão ético-política: as escolas e o que nelas ensinamos-aprendemos não têm fim em si mesmo, mas estão a serviço de um tipo de homem e mulher que vai se constituindo socioculturalmente dentro de uma sociedade política e economicamente organizada. Daí a importância de professores(as) e alunos(as) sabermos a serviço de qual “genteidade” e de qual sociedade estamos nos colocando nos processos de ensino-aprendizagem, conscientes de que toda ação educativa tem uma intencionalidade. Mais ainda: as relações sociais e humanas pretendidas precisam ser assumidas e vividas coerentemente no cotidiano das escolas e das nossas vidas, buscando construir estruturas e relações de poder que superem a dominação e a subalternidade, ensinando-aprendendo democracia e cidadania pela vivência. Com a responsabilidade de desenvolver uma atividade pedagógica e científica, a função da escola (e dos/as professores/as) é política e social. Nas palavras de Freire (1997, p. 47), “a solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância”.
Nos encontros de formação continuada com os(as) colegas professores(as) da Educação Básica de Santa Maria e Região, muitas vezes nos é relatado que "a faculdade não nos prepara para trabalhar com a formação integral do ser humano". Por outro lado, também constatamos o quanto é difícil, para nós educadores(as), nos colocarmos numa atitude de abertura e atenção, com sensibilidade, questionamento e reflexão, para irmos aprendendo a desvelar  e reconhecer, dialética e criticamente, a função social de determinadas formas de conhecimento e práticas educativas, relacionando as suas prioridades e direcionamentos com a totalidade dos processos sócio-históricos do significado e desenvolvimento da cidadania de homens e mulheres. O desafio é ir construindo, coerentemente, algumas categorias e princípios que nos ajudem a assumir as escolas como espaço-tempos em que vamos aprendendo práticas pedagógicas e sociais, enquanto modos de sentir/pensar/agir, que tanto podem ser de dominação ou de libertação, entendendo que, como atores sociais, construímos e somos construídos pelos processos sócio-histórico-culturais dos quais fazemos parte. Ou seja,

não posso ser professor sem me pôr diante dos alunos, sem revelar com facilidade ou relutância minha maneira de ser, de  pensar politicamente. Não posso escapar à apreciação dos alunos. E a maneira como eles me percebem tem importância capital para o meu desempenho. Daí, então, que uma de minhas preocupações centrais deva ser a de procurar a aproximação cada vez maior entre o que digo e o que faço, entre o que pareço ser o que realmente estou sendo (FREIRE, 1997, p. 108).

Exercitar o perguntar e o deixar-se ser perguntado faz parte de práticas educativas que se pretendem dialógicas, cidadãs e democráticas, re-inventando as relações de poder para colaborar com a construção de uma sociedade também democrática, pois a cidadania é uma construção intencionada jamais terminada, que “demanda engajamento, clareza política, coerência, decisão. Por isso mesmo é que uma educação democrática não se pode realizar à parte de uma educação da cidadania e para ela” (FREIRE, 1993, p. 119) .






- Dimensão técnico-científica: o domínio técnico-científico é uma das especificidades da educação escolar, sendo condição necessária (mas não suficiente) para quem assume o ofício de educador(a). Ele precisa ser assumido com rigorosidade, buscando sua razão de ser dentro da totalidade sócio-histórica em que foi produzido, mas não como “mera transmissão” e também jamais desligado do mundo da vida das pessoas envolvidas na práxis educativa em processo, sob pena de cair-se num cientificismo estéril, e os “novos conhecimentos” (conteúdos conceituais) não terem sentido e importância para que todos(as) possam ser mais homens e ser mais mulheres.
No que diz respeito aos “novos conhecimentos” (ou conteúdos científicos), eles precisam vir ao encontro da realidade do mundo da vida e dos saberes que todos(as) já trazem para o processo em sala de aula, numa relação dialógica de uma verdadeira comunidade de aprendizagem crítico-reflexiva, não apenas descrevendo-os conceitualmente, mas redizendo-os e re-significando-os sócio-histórico-culturalmente. Mais que repetir pacientemente, sem alcançar uma real compreensão do significado das teorias e conteúdos-conceituais, trata-se de desvelar, re-escrever e re-criar o “texto” ou a “lição”, como sujeitos inteligentes, em função da realidade vivida, em função dos sonhos e projetos daqueles e daquelas com quem estamos interagindo político-pedagogicamente.
Não se trata de negar a importância da aprendizagem da lecto-escrita e dos conhecimentos e técnicas historicamente construídos e acumulados pela humanidade, mas abordá-los de forma crítica, compreendendo-os nas suas relações com os fatores econômicos, sociais, políticos e culturais do momento e dos lugares em que foram gerados, e confrontá-los com a situação sócio-econômico-político-cultural das pessoas envolvidas no novo processo de aprendizagem; isto possibilita a sua re-invenção,  construindo um novo sentido existencial pela relação dos conteúdos conceituais com a prática e a experiência do mundo dos(as) educandos(as) e dos(as) educadores(as).
Isso demanda tempo para dialogar, “tomar distância”, problematizar, refletir e buscar cooperativamente a apreensão crítica das idéias dos(as) autores(as), para relacioná-las com as idéias dos(as) educandos(as) e educadores(as), sempre situando a todas dentro dos seus contextos para desvelar e apreender o movimento dinâmico e dialético entre a palavra e o mundo, buscando as raízes do conhecimento a partir das condições em que foi gerado. A rigorosidade científica requer que assumamos que nenhum conhecimento é neutro, mas é sistematizado como “mecanismo de compreensão e transformação do mundo”.  “Não há, pois, conhecimento que se faça fora da prática do sujeito com o mundo que o cerca, e ao qual é necessário compreender, pela criação de significados e sentidos” (LUCKESI et al., 1984, p. 53).
Alcançar a compreensão profunda dos conteúdos, da realidade e das pessoas, consiste numa reflexão e tomada de consciência que se manifesta em palavras e atitudes frente ao conhecimento, ao mundo e às pessoas; implica procurar curiosa e rigorosamente onde os mesmos se geraram e/ou onde e para quê pretendem interferir.



 - Dimensão Epistemológica: Ira Shor, dialogando com Freire, no livro “Medo e Ousadia. O Cotidiano do Professor” (FREIRE, 1996, p. 15), faz a seguinte afirmação:

O rigor é um desejo de saber, uma busca de resposta, um método critico de aprender. Talvez o rigor seja, também, uma forma de comunicação que provoca o outro a participar, ou inclui o outro numa busca ativa. Quem sabe essa seja a razão pela qual tanta educação formal nas salas de aula não consiga motivar os estudantes. Os estudantes são excluídos da busca, a atividade do rigor. As respostas lhes são dadas para que as memorizem. O conhecimento lhes é dado como um cadáver de informação – um corpo morto de conhecimento – e não uma conexão viva com a realidade deles.

Trabalhando com e a partir dos conhecimentos já sistematizados, educandos(as) e educadores(as) vão refazendo a gênese produtora de tais conhecimentos na pluralidade das suas inter-relações, possibilitando assim a construção de novos conhecimentos a partir do que outros(as) investigaram e sistematizaram. Aprender a “tomar distância” daquilo que pensamos demasiadamente seguro em nossas verdades, em nossas convicções, crenças, experiências e mundo da vida, ajudará a encontrar e/ou construir a raison d’être do objeto em questão, fazendo perceber a pluralidade de relações que o constituem e significam, indo além da mera descrição empírica ou conceitual. Educadores(as) e educandos(as) começam a re-dizer e re-criar o dito e o feito, tornando-se sujeitos do seu ato cognoscente e da sua história: “educador e educandos, co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento” (FREIRE, 1998, pp. 55/56).
 Descobrem-se sendo homens e mulheres num mundo que é feito e significado pelo trabalho, pela linguagem, pelas emoções, pelos sentimentos, pelas convicções, pelas reflexões, pelas decisões e ações de seres humanos, para que historicamente pudessem ir se humanizando, sobretudo pelo assombrar-se, pela coragem do questionamento crítico, do diálogo problematizador; pela capacidade e ousadia de conhecer para compreender e transformar.
No livro dialogado com Paulo Freire, sobre a alfabetização enquanto processo de capacitação para ler o mundo e ler a palavra, Donaldo Macedo afirma que sempre se apreende mais facilmente quando a compreensão do diferente e/ou novo toma como ponto de partida algo que já é conhecido do aprendiz: “o conhecimento de um conhecimento anterior, obtido pelos educandos como resultado da análise da práxis em seu contexto social, abre para eles a possibilidade de um novo conhecimento” (MACEDO. In FREIRE; MACEDO, 1994, p. 105).
Para tanto, é fundamental substituir a “pedagogia da resposta” e da “transmissão de conteúdos” pela “pedagogia da pergunta”, para aguçar a curiosidade epistemológica e a criatividade em educandos(as) e educadores(as). Neste sentido, é importante que os(as) participantes não tenham demasiada certeza das suas certezas, principalmente os(as) professoras(as). Mesmo que haja momentos explicativos, “o fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou ouve. O que importa é que professores(as) e alunos(as) se assumam epistemologicamente  curiosos(FREIRE, 1997, p. 96).

  
- Dimensão estético-afetiva: os seres humanos que se envolvem nas práticas educativas precisam ser reconhecidos e assumidos na sua totalidade, vivenciando o diálogo-problematizador, a sensibilidade para com os diferentes contextos, a criatividade, a autonomia, a solidariedade, a responsabilidade, a participação, a afetividade. Crianças, adolescentes e adultos vêm à escola para aprender a ser mais homens e mulheres; mas, muita atenção:“é como uma totalidade – razão, sentimentos, emoções, desejos – que meu corpo consciente do mundo e de mim capta o mundo a que se intenciona” (FREIRE, 2000, p. 76).
Trata-se de uma educação voltada para a pessoa enquanto corporeidade consciente, com emoções, sentimentos, olhares de espanto e admiração, desenvolvendo em todos e todas as capacidades da curiosidade, da sensibilidade para consigo mesmos(as), com os(as) outros(as) e com a realidade circundante, permitindo que as surpresas, as emoções, as pulsações, a imaginação, o gosto pelo risco, o corpo, a sexualidade e o sonho façam parte do seu modo de ser, viver e aprender como crianças, adolescentes, jovens e adultos. Ou seja, “o humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. [...] Mas o fundamento emocional do racional é uma limitação? Não! Ao contrário, é sua condição de possibilidade” (MATURANA, 2001, p. 18).  
Meninos e meninas, jovens ou adultos(as), esperam encontrar na escola mulheres- professoras e homens-professores na sua inteireza, capazes de vivenciar emoções, permitir-se e assumir sentimentos, sonhos, amores e raivas; capazes de admirar-se diante de um belo pôr-de-sol ou emocionar-se com uma bela música, e também indignar-se diante da injustiça e brutalidade de quem “brinca de botar fogo em índio” ou de quem, por causa da ganância e do lucro, agride e destrói o Planeta; capazes de sorrir, acarinhar, chorar, abraçar quem chora e quem vibra; ainda capazes de sentir um “nó na garganta” e de viver a solidariedade; capazes de dar e receber afeto, sem deixar de ser “firme” quando necessário; capazes de brincar e ser alegres, sem deixar de ser sérios; capazes de respeito, de amizade e de competência, com todos(as) e em todos o espaço-tempos.
Poderíamos dizer que as crianças, os jovens e os adultos sentem-se “mais gente”, e aprendem melhor e com mais alegria, quando encontram educadores e educadoras amáveis e sensíveis. As pessoas sensíveis e amáveis são acolhedoras, sinceras e transparentes, incapazes de discriminar ou desrespeitar, buscando conviver com o cuidado para não magoar ou diminuir o(a) outro(a), embora saibam quando e como dizer sim e dizer não. São, ainda, pessoas que sonham, e partilham seus sonhos com os(as) outros, motivando-os(as) a também sonhar; não só sonham, mas esperançosamente se lançam para fazer de seus sonhos projetos e realizações transformadoras, contribuindo com a construção de um mundo e uma vida com mais bonitezas e alegrias para todos(as).
Tudo isso deve ser intencionalmente assumido, como parte de uma práxis educativa séria e rigorosa, como componentes pedagógicos fundamentais que perpassam todos os processos de ensino-aprendizagem. Assim a escola vai se tornando um ambiente onde todos(as) vão aprendendo a descobrir e reconhecer as bonitezas e possibilidades do mundo e da sua “genteidade”, assumindo-se como seres de esperança, “gostando de ser gente”[3].


- Dimensão Pedagógica: O(a) educador(as) não é aquele que se coloca acima ou diante de seus(suas) educandos(as) para “instruí-los”, mas quem com eles(as) faz a “caminhada”; juntos vão descobrindo e (re)aprendendo o que é importante para ser mais, cada um(a) “dizendo a sua palavra” e “escutando a palavra” do(a)a outro(a). Os processos de ensino-aprendizagem vão se dando numa reciprocidade de consciências, não carecem de alguém que tudo sabe a ensinar para outro que nada sabe, mas alguém que assuma a responsabilidade de conduzir o processo em condições favoráveis à dinâmica dialógico-problematizadora do grupo, uma vez que "enquanto dirigente do processo, o professor libertador não está fazendo alguma coisa aos estudantes, mas com os estudantes" (FREIRE, in FREIRE; SHOR, 1996, p. 61). Trata-se de resgatar o “pedagogo” da paidéia grega, sendo aquele(a) que conduz – caminhando ao lado, dialogando, sendo amigo(a), problematizando, refletindo, desafiando –  o(a) educando(a) para ir aprendendo os “ofícios” e “conhecimentos” necessários para viver como homem ou como mulher.
O papel do(a) educador(a) é fundamental enquanto que, pelo diálogo e pela problematização, vai conduzindo um processo de desvelamento da ciência, da realidade e da própria existência humana, sendo que, para isto, a professora e o professor precisam ter clareza sobre o ponto de partida e de chegada da reflexão e da análise. Cabe-lhes conduzir o processo de tal forma que as falas dos(as) educandos(as) e as falas do(a) educador(a) – que, por vezes, precisam ser expositivas sobre determinados conteúdos-conceituais – conduzam a uma visão clara, fundamentada e crítica, mas de cuja construção todos e todas participaram como sujeitos. Considerando a importância do papel e da necessária rigorosidade e seriedade do(a) educador(a), Freire enfatiza:
           
faz parte das condições em que aprender criticamente é possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo (FREIRE, 1997, p. 29).


Esta nova perspectiva pedagógica, com rigorosidade e sensibilidade, assenta-se numa “pedagogia radical da pergunta”. A primeira aprendizagem, para uma prática educativa crítica e democrática, é aprender a perguntar e aprender a provocar perguntas; saber quais perguntas são fundamentais para sentir e apreender a realidade, e quais perguntas são fundamentais na rigorosidade da busca da razão de ser do conhecimento, seja ele popular ou científico. Somente quem se pergunta e permite que a curiosidade dos(as) outros(as) o(a) provoque e desafie pode ir apreendendo sempre, mesmo quando está ensinando. Apreender a escutar a pergunta dos(as) educandos(as) e com eles(as) buscar a resposta pode levar a professora ou o professor a rever as suas respostas já elaboradas, ou simplesmente retiradas dos livros, além de desenvolver nele(a) a capacidade de falar com os(as) educandos(as), e não para os(as) mesmos(as) ou sobre os(as) mesmos(as); mais que um confronto, a pergunta coloca educandos(as) e educadores(as) lado a lado para juntos buscarem novas respostas, exercitando intersubjetivamente a curiosidade epistemológica.



O cotidiano escolar, como parte dos processos de existenciação humana, é mais do que um conjunto de teorias, conceitos ou até mesmo discursos críticos; somos homens e mulheres como totalidades tramadas com sentimentos, crenças, valores, sonhos, emoções, conflitos, idéias e projetos. Daí a importância de um “ambiente” dialógico-reflexivo, permeado por uma razão-emoção que combina o sentir/pensar/agir crítico com o sentir/pensar/agir criativo, curioso, rigoroso e amoroso, com uma “pedagogia da pergunta”, em que educandos(as) e educadores(as) vamos aprendendo também a tomar nas próprias mãos nossas histórias e nossas vidas, a partir e com os conteúdos trabalhados. Por isso tudo, o papel do educador e da educadora

...é testemunhar a seus alunos, constantemente, sua competência, amorosidade, sua clareza política, a coerência entre o que diz e o que faz, sua tolerância, isto é, sua capacidade de conviver com os diferentes para lutar com os antagônicos. É estimular a dúvida, a crítica, a curiosidade, a pergunta, o gosto do risco, a aventura de criar (FREIRE, 1995, p. 54).

A escola, então, vai se constituindo um espaço-tempo de vivência da nossa “genteidade”, na totalidade das dimensões e aspectos da inteireza dos nossos corpos conscientes; vamos descobrindo e assumindo a nossa complexidade, tramada pelo entrelaçamento do individual com o sócio-histórico-cultural, através de sonhos, angústias, idéias, necessidades, crenças, desejos, afetividades, projetos, medos e esperanças. Nela e com ela, homens e mulheres poderemos ir descobrindo-nos como totalidades complexas, partes de uma totalidade ainda maior, “gostando de ser gente”, sabendo-nos condicionados(as) e inconclusos(as) e, por isso mesmo, capazes de “ser mais” , com a ousadia de correr o risco da aventura histórica como possibilidade de vislumbrar e construir horizontes mais esperançosos. 

Referências

ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre. Imagens e auto-imagens. 3ªed. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2001.
FIORI, Ernani Maria. Educação e Política. Textos Escolhidos, vol. 2. Porto Alegre/RS: L&PM, 1991.
FREIRE, P. À Sombra desta Mangueira. 3ªed. SP: Ed. Olho d´Água, 2000.
FREIRE, P. & FAUNDEZ, A. Por uma Pedagogia da Pergunta. RJ: Paz e Terra, 1998.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 6ªed. RJ: Paz e Terra, 1997.
FREIRE, P. A Educação na Cidade. 2ªed. SP: Cortez, 1995.
FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia. O cotidiano do professor. 5ªed. RJ: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, P. & MACEDO, D. Alfabetização. Leitura do mundo, leitura da palavra. 2ªed. RJ: Paz e Terra, 1994.
FREIRE, Paulo. Professora Sim, Tia Não. Cartas a quem ousa ensinar. 2ªed. SP: Olho d'Água, 1993.
HENZ, C. I. Razão-emoção Crítico-reflexiva: um desafio permanente na capacitação de professores. Tese (doutorado). P.A: PPGEDU-UFRGS, 2003.
MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. 2ªed. Belo Horizonte/MG: Ed. UFMG, 2001.
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 3ªed. SP: Cortez; Brasília/DF: UNESCO, 2001.
NIDELCOFF, Maria Tereza. Uma Escola para o Povo. 38ª ed. SP: Editora Brasiliense, 1996.




[1] Capítulo de Livro. IN: ANDREOLA, B; PAULI,E; KROMBAUER, L; ORTH, M (Orgs). “Formação de 
  Educadores: da itinerância das universidades à escola itinerante” . Ijuí/RS: Ed. UNIJUÍ, 2010. pp.49-62.
[2] Doutor em Educação pelo PPGEDU/UFRGS.  Professor do PPGE/CE/UFSM.   
  Email: celsoufsm@gmail.com.com

[3] Cf  FREIRE, 1997, pp. 58/59.

DIVERSIDADE CULTURAL E EMANCIPAÇÃO


DIVERSIDADE CULTURAL E EMANCIPAÇÃO[1]

Celso Ilgo Henz[2]


Talvez para muitos seja ultrapassado e jurássico falar em emancipação em tempos de pós-modernidade e na sociedade do conhecimento e da comunicação, onde “todos podem ter acesso ao que é produzido mundialmente”. Outros talvez considerem utópico falar em emancipação dentro das relações da sociedade capitalista, agora no estágio da especulação financeira (em que o trabalho vivo do ser humano vem sendo trocado pelo trabalho morto da robotização). Não obstante, é a partir desta realidade que ainda continuamos acreditando no ser humano como capaz de (re)descobrir-se sócio-histórico-culturalmente, embora condicionado, com capacidades de tomar nas mãos a sua história, a sua constituição humana na interação e “troca” com os outros e com o mundo.
A globalização coloca homens e mulheres sob diferentes domínios de uma verdadeira “indústria cultural”, visando homogeneizar todos os povos. O sociólogo Octavio Ianni, em sua obra Teorias da Globalização, analisa a globalização capitalista não como um fenômeno meramente econômico, mas também como um processo que envolve as configurações sociais e o estado de espírito das pessoas, gerando diferentes dilemas e horizontes nas pessoas e nas sociedades. A globalização, em nome da modernização, implicaria na difusão e legitimação dos padrões e valores sócio-culturais predominantes na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Para o autor,“...cabe reconhecer que a modernização, nos termos que ocorre pelo mundo afora, está predominantemente determinada pela racionalidade do capitalismo, enquanto racionalidade pragmática, técnica, automática. Em lugar de emancipar indivíduos e coletividades, em suas possibilidades de realização e imaginação, produz e reproduz sucedâneos, os simulacros, virtualidades ou espelhismos” (1996, p. 91).
            Nas relações dentro globalização a diversidade cultural dos povos tanto pode ser enriquecida como também pode ser anulada. Para que o acesso e o contato com o mundo e as “diferenças” nele existentes não transformem ninguém em mero “repetidor” ou “consumidor” dos “bens culturais” de “povos mais desenvolvidos”, é preciso assumir uma postura dialógico-reflexiva, buscando cada povo e/ou indivíduo conhecer e valorizar a sua identidade cultural – e o que nela está implicado – para também valorizar e reconhecer as diferenças histórico-culturais do(a) “outro(a)”, sem necessariamente ter que sujeitar-se aos seus ditames ou, então, simplesmente rejeitá-las.

1. Cultura: ir aprendendo a ser homens e mulheres
            Em meio a uma sociedade brasileira que historicamente foi submetida a uma dependência cultural, forçada à repetição dos valores, costumes, língua, religião e conhecimentos do colonizador, Paulo Freire, em meados do século XX, propôs a sua “Pedagogia do Oprimido”. A cultura é elemento central do processo de reflexão dialógica que leva à conscientização e, por conseguinte, à emancipação daqueles e daquelas que estavam sendo “objetos” da cultura opressora, seja nos campos econômico, político, religioso e intelectual. Num de seus últimos escritos Freire retoma a importância da reflexão e da conscientização para “gostar de ser homem e mulher” em meio a estruturas ainda dominadoras e exploradoras:
                                  
Gosto de se gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam.[...] Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Insisto na sua atualização. Na verdade, enquanto aprofundamento da “prise de conscience” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana.[..] Em lugar de estranha, a conscientização é natural ao ser que, inacabado, se sabe inacabado. [...] Mais ainda, a inconclusão que se reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do sujeito inacabado num permanente processo social de busca. (1997, pp.60/61)

Sim, na pedagogia libertadora de Paulo Freire a cultura é um elemento central para uma educação crítico-reflexiva e emancipadora. Desde as suas primeiras experiências de alfabetização de adultos em Angicos, na década de 50, até seus últimos escritos, sempre enfatizou a importância de cada ser humano ir se descobrindo como alguém que vem sendo porque faz cultura relacionando-se permanentemente com os(as) outros(as) e com o mundo, acrescentando ao mundo natural criações e recriações que se configuram como saberes e conhecimentos expressos pela linguagem e pelo trabalho. Homens e mulheres vão se descobrindo e assumindo numa interação geradora de cultura, com o mundo e com os outros seres humanos. Dialogando, tendo curiosidade, refletindo, buscando apreender criticamente a causalidade dos dados da realidade, dos fenômenos e das situações que captam e/ou experienciam, vão desenvolvendo uma consciência crítica que começa por devolver-lhes a auto-estima, a confiança em si mesmos(as) e a valorização daquilo que fazem, pensam, sentem e estão sendo[3]. Desmistificando o conceito elitista e excludente de cultura, sua criticidade tem como ponto de partida uma nova concepção:

...a cultura como acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como a incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições "doadas". [...] O homem, afinal, no mundo e com o mundo. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto.
A partir daí, o analfabeto começaria a operação de mudança de suas atitudes anteriores. Descobrir-se-ia, criticamente, como fazedor desse mundo da cultura. Descobriria que tanto ele como o letrado têm ímpeto de criação e recriação. Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico, ou de um pensador. Que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu País, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura é toda criação humana.(FREIRE, 2000, p. 117)

É fundamental partir sempre da escuta e da problematização do mundo do trabalho, das idéias, dos mitos, das crenças, das convicções, das obras, dos produtos, das artes, das ciências, das aspirações, enfim, do mundo da cultura e da história que homens e mulheres conhecem pela vivência cotidiana, buscando com eles(as) descobrir que tudo é resultado das relações dos membros da espécie humana entre si e com o mundo, mas que esta realidade ao mesmo tempo condiciona aos seres humanos, seus criadores.
Descobrindo-se na condição de “não-sujeitos”, mas também reconhecendo a subjetividade do(a) outro(a), dialogando, homens e mulheres, mesmo em situações estruturais de alienação e dominação, podem ir encontrando luzes e brechas para engajarem-se num sentir/pensar/agir de transformação desta realidade e da sua nova auto-configuração enquanto sujeitos; começam a assumir a aventura e o risco histórico de re-humanizar o mundo no qual eles(as) próprios(as) estão sendo discriminados e/ou negados, para se reencontrarem e reconquistarem humanamente, não como objetos, mas como sujeitos que tomam nas mãos os rumos da história e da própria existência.
A práxis educativa – nos seus diferentes lugares e modos – pode ser a provocadora e a colaboradora principal de um projeto novo, confiando na capacidade crítico-reflexiva dos seres humanos, desenvolvendo com eles as condições para transformarem a si mesmos e o sistema de valores que sustentam estruturas socioeconômicas de dominação e exploração, provocando uma "revolução cultural" que propicie o aparecimento de um mundo novo, construído e habitado por homens e mulheres também novos(as). Uma práxis educativa, então, contribuirá para a emancipação de homens e mulheres que vão descobrindo em si e nos(as) outros(as) a possibilidade de, não obstante todas as determinações estruturais, serem novamente os(as) sujeitos da história; eles e elas têm o poder de se libertarem.
Assim, a cultura vai se fazendo, tornando possível a humanização de homens e mulheres, constituindo um sentir/pensar/agir que, reflexivamente, sabe-se sentindo/pensando/agindo, sabe-se estar sendo e precisando aprender a ser; eles e elas vão assumindo uma identidade sócio-cultural, assumindo-a no relacionamento interpessoal e com o mundo. Não se pode falar em homens e mulheres sem recorrer ao tema cultura; ele é inerente ao processo de humanização das populações humanas; homens e mulheres são seres culturais por essência, na medida que “tomam consciência” da processualidade sócio-histórica em que vem sendo, produzindo um modo de ser e viver pela interação com os outros e com o mundo. Daí que diferentes populações humanas, mesmo tendo a mesma carga genética, serem diferentes umas das outras; nada do que é humano é puramente natural. O que é humano é sócio-histórico-culturalmente aprendido. Por ser pela cultura que, historicamente, diferentes grupos se humanizaram, eles também foram assumindo modos de sentir/pensar/agir, de ser e viver, com características específicas, ainda que recebendo influências (“trocas”) de grupos vizinhos; assim, também os conceitos de “cultura” e “identidade” não podem ser tomadas separadamente. Ademais, toda cultura passa pela mediação da linguagem (e do trabalho).

2. “Aprender a dizer a palavra”
A linguagem é esta aptidão que somente homens e mulheres conseguimos desenvolver, nomeando o mundo para, também simbolicamente, mostrar o que já se conquistou, refletir sobre o que foi feito e imaginar novas mudanças, novas opções; é a capacidade e oportunidade que cada ser humano tem para se pronunciar no seu tempo presente, refletindo, buscando a razão de ser dos conhecimentos e das palavras com as quais as gerações antecessoras historicamente pronunciaram o seu espaço-tempo e a si mesmas; é o meio pelo qual os seres humanos vão dando sentido à própria existência.  Pela linguagem a espécie humana vive na história, pela história, como história e faz história, não ficando prisioneira às fronteiras do presente, podendo interpretar e compreender o passado, ressignificá-lo na atualidade e projetar um novo futuro.
Pela mediação da linguagem os diferentes grupos da espécie humana foram assumindo um modo de sentir/pensar/agir com características próprias, transformando também o mundo natural ao seu entorno através do trabalho. Não obstante, paradoxalmente, na mesma processualidade sócio-histórico-cultural em que foram se emancipando da condição meramente animal, começaram as disputas entre os diferentes grupos; uns passaram a dominar e explorar os outros, impondo-lhes as suas maneiras de ser e viver, transformando-os em “objetos” da sua cultura, do seu sentir/pensar/agir. Foram sendo negadas e/ou arrancadas as raízes identitárias (a sua humanização originária), forçando certos grupos tomarem como referência do seu sentir/pensar/agir os valores, idéias, crenças, costumes e língua do grupo dominante; alienados e dominados, deixaram de ser sujeitos de si mesmos. Por outro lado, grupos e povos, para protegerem-se da possibilidade de dominação e de aculturação, foram criando estruturas e mecanismos de proteção e disseminação das suas características identitárias, desenvolvendo-se uma espécie de etnocentrismo.
O etnocentrismo consiste numa postura em que “o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual , pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade” (ROCHA, 2004, p. 7). “Eu” e “minha cultura” somos o centro, o melhor, o superior; o “outro”, e o seu jeito de conceber a vida e o mundo, são tomados como o anormal, o exótico, o ridículo, o atrasado. O “outro” nunca equivale ao “eu”, e ele sempre é julgado a partir dos valores e referenciais da minha cultura. Ou seja, “aqueles que são diferentes do grupo do eu – os diversos ‘outros’ deste mundo – por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos” (Ibidem, p.15).
Toda pessoa e/ou sociedade tem a base de sua compreensão no seu processo sócio-histórico-cultural. Eis porque é importante o reconhecimento da “palavra” de todos os seres humanos como sujeitos cuja constituição vem se dando por meio de interações, que por vezes podem ser “preconceituosas”, discriminadoras, excludentes e/ou dominadoras. Entretanto, tomando consciência do instituído que condiciona, mas não determina fatalisticamente, pode-se ir construindo tempos e espaços instituintes, onde tudo se põe como projeto, como sonho de “inéditos viáveis”, desafiando a cada uma e a cada um a “dizer a sua palavra” como ação consciente e engajamento na construção e re-construção da história, do mundo, da própria existência humana. Homens e mulheres precisam ser olhados(as) e escutados(as), reconhecidos(as) e valorizados(as), em todas as suas dimensões, para que se consiga integrar e assumir as suas diferentes construções sócio-histórico-culturais, na complexa trama em que se fundem o intelectual e o emocional, o pensar e o fazer, o teórico e o prático, o dever e o prazer, o aprender e  a alegria, o individual e o social.
Assumindo o seu mundo e a sua identidade cultural conscientemente, os seres humanos vão se constituindo enquanto corpos conscientes; humanizando o seu meio, humanizam-se. Por isso, a tarefa da educação é capacitar as pessoas para participarem conscientemente do que existe, mas também para se empenharem fortemente na busca e construção de alternativas que criem condições favoráveis para que todos(as) possam se assumir como sujeitos-fazedores da sua história e do mundo no qual intersubjetivamente vão se gentificando. Neste processo, educar é conscientizar, no sentido de buscar a emancipação e a plenitude da condição humana de cada homem e de cada mulher.



3. Conscientização: desvelamento e compromisso
            Ainda que existam estruturas que aprisionam, é possível criar processos que libertem. Eles e elas podem tomar em suas mãos a sua existência, ainda que nela esteja “introjetada” a cultura do opressor.  Eis porque, de dentro de um sistema articulado de dominação, externa ou interna, o princípio da conscientização é um fator decisivo para um processo de emancipação.  Na conceituação profunda e pluridimensional de FIORI (1991, p. 66), “...o homem não pode libertar-se, se ele mesmo não protagoniza sua história, se não toma sua existência em suas mãos. A isso conduz a dinâmica da conscientização. [...] Só assim será possível repor os termos dos problemas de uma educação autenticamente libertadora: força capaz de ajudar a desmontar o sistema de dominação, e promessa de um homem novo, dominador do mundo e libertador do homem”.
Conscientizando-se, homens e mulheres se existenciam: tomam nas mãos a constituição do seu mundo e a sua própria constituição humana, assumindo a sua emancipação, a sua condição de sujeitos do seu sentir/pensar/agir individual e coletivo, da sua cultura[4]. O ser humano só se conscientiza na medida em que vai desvelando e decodificando o “seu mundo” na sua complexa trama multidimensional, na medida em que nele se encontra, em que nele se assume; homens e mulheres se presentificam a si mesmos(as) presentificando e assumindo o seu mundo e os(as) outros(as), manifestando o seu sentir/pensar/agir do mundo, com o mundo e sobre o mundo. Ou seja, “a consciência é ‘para si’, sendo ‘para o outro': simultaneamente, implicadamente, dialeticamente.Uma consciência que fosse presença presente a si mesma, sem a mediação de presente algum, não seria ‘para si’ mas o ‘si mesmo’ absoluto. Por isso, o ‘para si’ da consciência é uma abertura que seria nada se o outro não fosse, na relação em que ela, a consciência, se constitui”  (Ibidem, p. 67).
Na medida em que o ser humano dá significados ao mundo e expressa o seu sentir/pensar/agir nesse significar ativo, ele se reencontra cada vez mais, reencontrando, também, as “verdades” sobre as quais o mundo vai sendo construído, bem como as “verdades” com as quais ele próprio, nos diferentes grupos e circunstâncias históricas, desenvolve seu processo de humanização. Então, a conscientização – que é sempre inserção intencionada no mundo, junto com os(as) outros(as) – só pode ser entendida como ação transformadora.  Homens e mulheres descobrem-se sendo num mundo que é feito e significado pelo trabalho, pela linguagem, pelas emoções, sentimentos, convicções, crenças, costumes, valores, reflexões, decisões e ações de seres humanos, para que historicamente pudessem se humanizar. Os saberes e as práticas passam a ser explicadas e compreendidas dentro da multiplicidade de sentidos construídos historicamente pela dialética mundo-educação-seres humanos. Eis porque em todos os espaço-tempos educativos é fundamental “tematizar”, valorizar e problematizar dialogicamente o mundo da vida, as diferentes culturas, as diferentes linguagens, os valores inculcados, os saberes e conhecimentos com os quais tentamos compreender e explicar as coisas e acontecimentos da vida e do mundo, como gerados historicamente.
De uma maneira ou outra, eles e elas já estão sendo gente, já aprenderam muitos saberes importantes em muitas dimensões da natureza/cultura humana; sabem, sentem, sofrem, vibram, imaginam, criam, falam, pensam, adivinham, sonham... vêm sendo gente pela “experiência feito”. Eis porque “é impossível conhecer com desprezo à intuição, aos sentimentos, aos sonhos, aos desejos. É o meu corpo inteiro que, socialmente, conhece. Não posso, em nome da exatidão e do rigor, negar meu corpo, minhas emoções, meus sentimentos” (FREIRE, 1995, p. 109).
Pensando em processos de emancipação, que sempre devem fundamentar-se na valorização e no reconhecimento das construções e saberes dos sujeitos envolvidos, entendemos que optar pela pedagogia do “diálogo problematizador” é o melhor caminho. O questionamento e a pergunta, o “dizer a palavra”, são mais do que simples indagações; são manifestações do corpo consciente de um homem ou de uma mulher que está em busca da realização dos seus sonhos ou da resolução de suas preocupações, carregadas de cultura, história, posição de classe, sentimentos, denúncias, esperanças, valores, saberes. É preciso reconhecer que o povo trabalhador já conhece, já tem um saber; e partir desta bagagem cultural para que suas crianças, seus jovens e eles(as) próprios(as) possam conhecer mais e melhor, inclusive para problematizar e refletir com eles(as) sobre o conhecimento (ou saber) que se fixa na aparência e sensibilidade dos fatos, buscando alcançar sua razão de ser. Segundo FREIRE, no seu diálogo problematizador com Moacir Gadotti e Sérgio Guimarães,“para que se faça isso ao nível do conhecimento da realidade, ao nível da participação, não há outro caminho senão o de partir precisamente do lugar em que a classe trabalhadora se acha. Partir do ponto de vista da sua percepção do mundo da sua história, do seu próprio papel na história, partir do que sabe para poder saber melhor, e não partir do que sabemos ou pensamos que sabemos. Se o ponto de partida está em nós, os chamados intelectuais, não há nenhum outro caminho senão o autoritarismo” (In GADOTTI et al, 1995, p. 69).

4. Diálogo problematizador, reflexão e emancipação
Na escuta da palavra do “povo”, da sua semântica, da sua sintaxe, está a chave da compreensão do seu sentir/pensar/agir e a possibilidade de, pelo diálogo problematizador, contribuir com processos emancipatórios quando as situações são de discriminação, de opressão, de dominação e de “coisificação” de homens e mulheres. Caso contrário, ainda que em nome de uma educação crítico-transformadora, pode-se transformá-los(as) em objetos do “nosso” modo de sentir/pensar/agir, sobretudo pela nossa linguagem, impondo-lhes a “nossa” visão da realidade, do mundo, da vida, da cultura, etc.. Neste sentido, Freire alerta:“... é o caso de quem procura fazer cabeças, desconsiderando, por exemplo, que a consciência crítica, junto com uma dimensão de classe supõe uma dimensão individual, o que faz com que a consciência se manifeste de forma heterogênea. É impossível, assim, que numa platéia de trezentas pessoas, por exemplo, a consciência crítica se manifeste homogeneamente. Os momentos da consciência são vividos também individualmente e remetem à história do indivíduo, da sua idade, sexo, crença, etnia, ou seja, elementos que não são apenas de classe” (Ibidem, 77/78).
Ademais, só é emancipador problematizar suas visões e concepções da realidade se primeiro houver a aceitação e valorização das mesmas tanto quanto se dá importância aos saberes e conhecimentos técnico-científicos. É a tarefa do “desvelamento do real”, que sempre requer, escuta, sensibilidade, diálogo, participação, respeito, problematização, reflexão, autonomia, oportunidade para todos(as) “dizerem” seu sentir/pensar/agir sem a presença de qualquer forma de coerção. Trata-se de assumir uma práxis educativa que coloque sua preocupação fundamental na realidade e na vida de seres humanos concretos, procurando “olhá-los” e “escutá-los” a partir do seu mundo significante das “palavras” que pronunciam. Prosseguindo o diálogo com Faundez, Freire aprofunda:“aí temos uma diferença enorme entre nós e as classes populares que, de modo geral, descrevem o concreto. Se perguntarmos a um favelado o que é uma favela, é quase certo que responda: na favela não temos água. A sua descrição é a do concreto, não a do conceito. A linguagem das classes populares é tão concreta quão concreta é a sua vida mesma”(FREIRE & FAUNDEZ, 1998, p. 64).
Por sua vez, a realidade sócio-histórica também é um “dando-se”. Por isso, ela pode ser mudada, transformada, uma vez que a sua complexidade e riqueza estão justamente no fato dela ao mesmo tempo mostrar-se cheia de limites e grávida de possibilidades. A busca da sua compreensão, o seu confronto com idéias e teorias, a sua problematização, a sua decodificação, vão se constituindo numa tomada de consciência capaz de gerar novos sonhos, novas idéias e novos projetos; mas com o sentido de “inéditos viáveis” porque partiram do concreto que aí está, podendo transformar-se em ações, e não porque foram “soluções importadas de fora”.  Para tanto, todos(as), mas principalmente os(as) educadores(as) e os(as) pesquisadores(as), precisam tornar-se“capazes de ir aprendendo a juntar, na análise do processo em que se acham, a sua competência científica e técnica, forjada ao longo de sua experiência intelectual, à sensibilidade do concreto” (Ibidem, p. 56). No “diálogo problematizador” tanto as perguntas como as respostas devem sempre ter ligação com a vida, com o mundo, com as ações e as práticas vivenciadas pelos(as) interlocutores(as), para não virarem um jogo intelectualista; é de fundamental importância que o homem ou a mulher, “ao perguntar sobre um fato, tenha na resposta uma explicação do fato e não a descrição pura das palavras ligadas ao fato. É preciso que..  vá descobrindo a relação dinâmica, forte, viva, entre palavra e ação, entre palavra-ação-reflexão” (Ibidem, p. 49).
A “pedagogia da pergunta” leva à radicalidade das palavras, das coisas, dos fatos, da vida e da existência de homens e mulheres, buscando a razão de ser, a essência do ser-no-mundo na concretude sócio-histórico-cultural. Mas também abre as portas para, a partir do desvelamento da realidade, sonhar novas aventuras e novas possibilidades; faz transcender as fronteiras espácio-temporais para vislumbrar um projeto de futuro com novos horizontes, novas maneiras de ser-no-mundo; faz nascer a esperança e o compromisso com a mudança, desafiando a todos(as) a construir a história de forma mais humanizadora: “o sonho  é sonho porque, realisticamente ancorado no presente concreto, aponta o futuro, que só se constitui na e pela transformação do presente” (Ibidem, p. 71). Somente quem tem o pé conscientemente na realidade consegue dar um passo para fora da mesma; somente quem toma consciência do espaço-tempo presente pode vislumbrar um futuro diferente, aceitando o risco de ajudar a construir uma nova história à luz da utopia, do sonho possível, para superar os limites que o sistema vigente impõe. Trata-se de uma relação dialética entre a realidade – que nos condiciona – e a utopia, o sonho de um mundo com relações diferentes. Para poder sonhar em ir a algum lugar diferente é preciso primeiramente saber e aceitar a realidade onde se está.
Então, nada sobre a vida, os humanos, a sociedade, a cultura, a linguagem, a ciência, a técnica, a atividade humana, a política, pode ser desconsiderado por uma práxis educativa crítico-emancipadora. Daí a necessidade de escutar os(as) educandos(as), dialogar com as crianças, os(as) jovens e/ou adultos para com eles(as) “ler o seu mundo”, partindo do saber da experiência-feito expresso na sua semântica, na sua sintaxe, na sua expressão corporal e em tantas outras formas de linguagem, para a partir daí, sempre com eles(as), começarmos a ler as palavras, os conceitos, as significações que historicamente os seres humanos sistematizaram e foram deixando de geração para geração.
Toda práxis educativa se dá com sujeitos totais que vêm se fazendo como história, como corpos conscientes, como identidades de crianças, adolescentes, jovens e adultos, evitando a “ruptura entre sensibilidade, emoções e atividade cognoscitiva. Já disse que conheço com meu corpo inteiro: sentimentos, emoções, mente crítica” (FREIRE, 1993, 118). Eis porque educadores(as) e educandos(as) precisam descobrir-se e assumir-se como seres humanos,  porque o processo de relações e aprendizagens  “não é movido a teoria, nem a tematização, nem a discurso crítico. É movido a valores, sentimentos, pensamentos, concepções, culturas escolares e profissionais" (Ibidem, 147). Para além da descoberta de explicações causais, teóricas ou ideológicas, é imprescindível buscar a auto-descoberta em meio às diferentes culturas sociais que vão guiando práticas, para que todos se tornem sujeitos, tanto da práxis educativa  como da práxis social. Assim, pela educação, as crianças, os jovens e os adultos, que vêm sendo, irão aprendendo a se assumir como seres sócio-histórico-culturais, descobrindo-se e conscientizando-se de que são condicionados e até mesmo dominados por outras culturas e circunstâncias, mas que podem libertar-se, tomar a sua genteidade nas próprias mãos, como sujeitos de si mesmos(as) e do mundo em que vêm sendo. Para tanto, muito mais que uma “pedagogia de respostas”, uma “pedagogia da pergunta e do diálogo” pode ajudar na construção de relações emancipatórias, onde todos possam “aprender a dizer a palavra” e “ser mais”.
É a partir do seu mundo que os sujeitos cognoscentes dão ao enunciado um determinado sentido, tanto na emissão como na recepção. As diferentes percepções estão imbricadas por uma diversidade de ambientes significados e significantes, decorrentes das vivências de homens e mulheres que vão se humanizando pela convivência; é preciso assumir a dialeticidade e dialogicidade Eu-Tu, capaz de gerar a fusão de horizontes entre os mundos dos conhecimentos acadêmicos e os mundos dos(as) educadores(as) e educandos(as) do momento presente, para que todos(as) compreendam o sentido das aprendizagens que buscam construir, sempre no sentido de nos orientarmos dentro do nosso mundo da vida e do nosso horizonte de compreensão.Quando sentimos os limites da nossa compreensão, sentimo-nos remetidos(as) a refletir sobre nosso modo de compreensão na sua condicionalidade e limitação sócio-históricas. Somos chamados(as) a procurar entender o "outro(a)" através do "seu mundo", da sua maneira de conceber as coisas. Assim, em todos os encontros humanos, em todos os conhecimentos, abrem-se novas visões e se descortinam novos horizontes, que por vezes podem até mesmo chocar-se ou romper com o "nosso mundo" de compreensão.
Quando se quer compreender o(a) "outro(a)", a partir do ponto de vista da época atual,  com uma situação histórica e um horizonte concreto de compreensão, deve-se escutá-lo(a) para compreender o que vem dele(a), do seu tempo, da sua cultura, do seu saber (científico ou de experiência-feito), dos seus questionamentos, de seu espírito. Ocorre, então, um duplo movimento, no qual se fundem os dois horizontes de compreensão.  Entretanto, para compreender o(a) outro(a) não é necessário assumir seu ponto de vista, seu modo de pensar, suas convicções e atitudes, mas, mesmo guardando distância, examinar, verificar e conhecer a sua visão e os fundamentos que o levaram a pensar e falar o seu conteúdo daquela forma. O que não pode ocorrer é tentar significar o sentir/pensar/agir das outras pessoas a partir do nosso horizonte de compreensão, desrespeitando os significados presentes no mundo sócio-histórico-cultural da constituição existencial destes homens e mulheres; assim negar-se-ia a sua condição de sujeitos.
Urge, pois, o esforço em salvar um tipo de sentir/pensar/agir que não descole do mundo e da práxis vivida pelos homens e pelas mulheres de diferentes raças, etnias e/ou grupos sociais, configurando um modo próprio de sentir/pensar/agir, de ser-no-mundo; em outras palavras, reconhecer e comprometer-se com a sua identidade, constituída sócio-histórico-culturalmente. A primeira condição para tal é: acreditar nas capacidades dos homens e das mulheres, criando as condições necessárias para que possam “dizer a sua palavra”, a partir do seu mundo da vida, da sua maneira de ser e viver. Eles(as) próprios(as), na medida que também vão aprendendo a escutar e respeitar os(as) seus(suas) colegas, dialogicamente vão confrontando, comparando, problematizando as concepções de vida, os valores, os saberes e conhecimentos que vão sendo apresentados; ao serem problematizados(as) por outros(as) que pensam e sentem a realidade sob outra perspectiva, terão que rever seus posicionamentos e/ou aprofundá-los mais, na medida que vão argumentando, refletindo, organizando e criando idéias. Por isto Freire acredita que uma outra educação é possível, e propõe uma práxis educativa assentada na "concepção problematizadora e libertadora da educação", acreditando profundamente no poder (re)criador dos seres humanos, reconhecendo-os como "corpos conscientes".

5.  Encontros “Eu-Tu” e emancipação
Partindo do pressuposto de que homens e mulheres estão sendo impedidos(as) de ser na sua plenitude por causa das relações e estruturas sociais que os(as) coisificam obrigando-os(as) à acomodação ao mundo da opressão, diz-nos claramente FREIRE (1998, p. 67), "a libertação autêntica, que é humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo". Dialogando, questionando, refletindo, conscientizando, re-fazendo, investigando criticamente vão se descobrindo como seres capazes de sentir/pensar/agir por si mesmos(as), na medida que desvelam o mundo que os(as) fazia "ser menos". Ou seja, “a educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham. [...] Servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora” (FREIRE, 1998, p. 72).
No diálogo, na solidariedade, todos e todas podem ter as condições para ser mais, dizendo a sua palavra enquanto denúncia de um mundo opressor e desumanizador, mas também enquanto pronúncia transformadora desse mesmo mundo, através da fala, do trabalho, da ação-reflexão-ação. Aprendendo a falar umas com as outras, as pessoas aprendem também a reconhecer e incorporar as diferentes visões de mundo presentes nas palavras de cada participante. Dialogar é um processo em que todos(as) se permitem "pensar em voz alta", sabendo que podem ser questionados(as) nas suas idéias e que devem estar dispostos(as) a escutar as idéias dos(as) companheiros(as): "aprendemos a ouvir os outros quando gastamos tempo para construir para nós mesmos o significado do que eles estão tentando comunicar. E aprendemos a nos ouvir quando gastamos tempo refletindo a respeito do significado de nossas próprias palavras" (SPLITTER & SHARP, 1999,  p. 67). Cada um(a) vai falando na inteireza de seu corpo consciente que vem sendo sócio-histórico-culturalmente, mas também vai aprendendo a escutar a inteireza do(a) outro(a) como corpo consciente que em outro “mundo da vida” vem sendo sócio-histórico-culturalmente. Começa-se a respeitar as individualidades e características culturais de cada um(a); então, “a ida ao ‘outro’ se faz alternativa para o ‘eu’. O plano onde as diferenças se encontram, onde o ‘eu’ e o ‘outro’ se podem olhar como iguais, onde a comparação se traduz num enriquecimento de possibilidades existenciais, é o plano mais amplo e profundo de um humanismo do qual o etnocentrismo se ausenta. [...] Aí também, no encontro entre o ‘eu’ e o ‘outro’, emerge uma compreensão do ser humano, a um só tempo, problematizadora e generosa” (ROCHA, 2004, P. 93).
O reconhecimento da condição existêncial do meu “eu” está em olhar e escutar o “outro” e o “diferente” dentro da sua constituição histórico-cultural, a partir de um conjunto de emoções, decisões, consensos ou imposições, que grupos de homens e mulheres, historicamente sistematizaram e configuraram como princípios, valores, conteúdos conceituais, verdades, crenças, leis e gostos; esta trama de elementos acaba condicionando as relações entre as pessoas dos diferentes grupos sociais, através de uma herança sócio-histórico-cultural que é legada de uma geração para as gerações seguintes. Cada “outro(a)”, seja uma pessoa ou um grupo, assim como “eu”, tem a sua resposta existencial, a sua “alteridade”. Ou seja, a emancipação enquanto humanização só possível no encontro dialógico “Eu-Tu”.


Referências Bibliográficas
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[1] Artigo publicado na Revista Espaço Pedagógico. Vol 13,  nº 1 Passo Fundo: UPF Editora, Faculdade de Educação, jan.jun. 2006.
[2] Doutor em Educação pelo PPGEDU/UFRGS, setembro de 2003. Professor do PPGE, Centro de Educação da UFSM/RS. Coordenador do Grupo de Pesquisa “DIALOGUS: educação, formação e humanização com Paulo Freire”. Email: celsoufsm@gmail.com
[3] Freire relata que após os debates com os(as) alfabetizandos(as) adultos(as) dos círculos de cultura, tanto no Brasil como no Chile, afirmações de felicidade e autoconfiança ocorriam com freqüência, tais como: "Faço sapatos e descubro agora que tenho o mesmo valor do doutor que faz livros"; "Amanhã vou entrar no meu trabalho de cabeça para cima" (Gari de Brasília); "Sei agora que sou culto... porque trabalho e trabalhando transformo o mundo" (Um camponês). (Cf. FREIRE. Educação como Prática da Liberdade, p. 118-121).
[4] Para Fiori, cultura é o processo no qual homens e mulheres se constituem e re-constituem, através da encarnação e comunhão intersubjetiva e da mediação humanizadora do mundo; esse processo implica, pois, aperfeiçoamento pessoal e transformação do mundo. A forma humana manifesta-se em comportamentos configurados num contorno axiológico de valores (cf. FIORI, 1991, pp. 77/78).
Paulo Freire entende a cultura como tudo o que os seres humanos criam “nas permanentes relações homem-realidade, homem-estrutura, realidade-homem, estrutura-homem (...) Todos os produtos que resultam da atividade do homem, todo o conjunto de suas obras, materiais ou espirituais, por serem produtos humanos que se desprendem do homem, voltam-se para ele e o marcam, impondo-lhe formas de ser e de se comportar também culturais” (FREIRE, 1989, pp. 56/57).